Um pequeno exemplo cósmico do caos

Gustavo Serrate
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Jornalista81 · Brasília, DF
1/11/2007 · 31 · 9
 

Um ensaio sobre a cidade

Como as formigas com o formigueiro, o cidadão existe em função da cidade. O comportamento do cidadão é pouco aleatório: Descanso, trabalho, lazer e alimentação. O cidadão age como força motriz. Sua energia é o combustível da cidade e com esta energia ele desempenha seus papéis como trabalhador e consumidor. O consumo é a espinha dorsal que possibilita o crescimento contínuo da cidade.

Assim como nas colméias e formigueiros existem, hierarquias rígidas. Supostamente o cidadão escolhe seus próprios líderes. Os líderes são escolhidos baseados em sua influência. A influência exercida por um líder pode ser baseada em seu carisma, sua retórica, em sua intimidação ou na capacidade de compra de seus recursos. Dinheiro pode comprar não somente objetos e serviços, mas almas, mentes e caráter. Tudo é mercadoria na cidade.

A mente do cidadão está na segunda categoria do saber racional. A categoria do saber racional autômato. O cidadão tem a capacidade de analisar as situações baseado em seu conhecimento e raciocinar tomando pequenas decisões regidas por uma vontade própria limitada. Em seu estado autômato, o cidadão trabalha exclusivamente em função da cidade enquanto emerge em ostracismo e torpor hipnótico deixando de praticar algumas necessidades básicas como a comunicação, a socialização e compaixão para com seus semelhantes. Todos estes são sintomas de apatia, e definem a inércia moral, uma patologia psicológica muito comum, diagnosticada devido à rotina imutável da vida na cidade.

O crescimento da quantidade dos cidadãos é exponencial e requer o crescimento dos setores comerciais e industriais. Caso a cidade não desenvolva estes setores para atender a esta demanda de trabalho, a cidade ganha aos poucos um novo setor habitacional alternativo, também conhecido como favela, cortiço ou assentamento.

Com a miséria surge a criminalidade que tem como função suprir a falta de trabalho dos cidadãos inativos. Esta é uma categoria especial de trabalho que cumpre sua função de perpetuar o ciclo da cidade através do consumo, a partir desse argumento, bandidos são trabalhadores que sustentam a cidade como quaisquer outros trabalhadores, no entanto suas profissões não são regulamentadas pela lei.

A cidade, a fim de assegurar sua própria sobrevivência, cria mecanismos para que o cidadão seja obrigado a consumir, entre estes mecanismos está a publicidade.

A publicidade consiste em criar a necessidade de consumo na mente do cidadão em troca de "prêmios especiais". Os "prêmios especiais" são pequenas ilusões plantadas sob o consciente limiar da mente do cidadão: como a sensação de ser feliz ou a de se sentir completo no ato da compra. Esta promessa se fricciona com o instinto. A sensação de ter a alma tocada arraiga este desejo no subconsciente do cidadão que passa a consumir todo o tipo de supérfluos sob a ilusão de que terá a alma satisfeita e seus mais profundos desejos realizados quando depois do ato ou efeito de comprar tudo será diferente. Esta ilusão é um mecanismo eficiente para se gerar o consumo, motriz capital.

A economia do super-organismo cidade, como a natureza, segue suas próprias regras. Vivemos e respiramos a tecnologia do metal e do concreto, em contraposição às tecnologias da carne e do vegetal. Habitamos as entranhas da cidade enquanto lhe costuramos e construímos por dentro. Somos os alfaiates e artesãos de sua estrutura condenados à inevitável fagocitose.

Há a possibilidade de que a consciência humana se perca durante a evolução. A natureza funciona plenamente desta forma onde todos os animais estão plenamente adaptados às suas posições e situações, não há rebeldia ou queixas, apenas uma harmonia amoral.

Somente líderes e artistas mantem resquícios de individualidade. Os líderes têm a função de organizar e realizar a manutenção, adaptação e (porque não?) mudança do status-quo e os artistas, derivados dos anjos, tem a função de acordar, abalar e inspirar a catarse. Talvez por este motivo tantos cidadãos busquem se tornar indivíduos especiais e únicos, mas a pessoa é para o que nasce assim como a formiga e a abelha que já nascem com suas funções definidas.

A natureza e a cidade são duas raças diferentes da mesma espécie, ou duas espécies do mesmo gênero, apesar disso, são opostas. Estão em constante embate. A natureza, prisioneira de constritos canteiros cercados por concreto, luta por sobrevivência, é o embate que se dá entre raízes e encanamentos, folhas e fios elétricos, troncos e asfalto. O melhor caminho para a evolução é uma simbiose perfeita. O caminho da involução é a destruição de um dos lados do embate ou uma relação de parasitose de um sobre o outro.
A cidade é um pequeno exemplo cósmico de que o caos tem capacidade de ordenar-se em núcleos lógicos e seqüenciais e desfazer-se da mesma forma, como se nunca houvesse existido. Um grão de areia percorre milhares de anos para acumular em torno de si grãos o suficiente para formar uma montanha, apenas para esperar mais alguns milhões de anos e voltar a ser o grão único, que sempre foi.

A evolução da cidade se dá em ritmo acelerado, assim como o tempo que ela obedece. A cidade respira vivaz, coletivos, automóveis, motos e metrôs circulam em suas veias transportando a energia humana a fim de lhe criar sólidas bases metálicas para o dia em que este colosso irá se erigir em autonomia, para caminhar sobre a terra.

O cidadão não é o ápice da evolução nem o princípio. Não é o primata nem o super-homem. Não é o macaco nem é Deus. Assim como os macacos são para o cidadão um motivo de riso ou dolorosa vergonha, é justamente isso que o cidadão deve ser para o ápice da evolução: Um motivo de riso ou dolorosa vergonha. O cidadão é uma corda estendida entre o primata e o super homem, uma corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no cidadão, é ser ponte, e não meta. O que pode amar-se no homem, é ser uma transição e um ocaso.

Referências e influências:
• Chico Science – Ref. E Inf.
• Laerte – Ref. Charge
• Will Eisner – Inf.
• Nietzshe – Ref. e Inf.
• Economia Contemporânea – Inf.
• A influência econômica sobre a estética urbana – Ref. e Inf.
• Akira – Ref. e Inf.

Texto para o Blog Cineasta 81

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jaderdavila
 

nossa!
essa foi uma visao muito clara e lúcida
do q é uma cidade
digna de manual de sociologia
sugiro pra proxima analise:
no passado a mulher tinha q pegar um e grudar
pq se ficasse gravida saberia q o pai era aquele
mas a mulher moderna nao fica gravida de bobeira
pq entao gruda como se ficasse ainda?
lindo texto, um abraço

jaderdavila · São Paulo, SP 2/11/2007 08:50
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procuradosaber
 

Nâo sei, estou em dúvida ainda... seu texto está muito positivista pro meu gosto, embora vc tenha dito que se inspirou em Nietzsche...

procuradosaber · São Paulo, SP 3/11/2007 07:32
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ubiratangeo
 

É um belo texto que mistura poesia (no melhor estilo mal do século), filosofia (no melhor estilo existencialista de Sartre) e sociologia (no melhor estilo pós-moderno). Mas, o acho muito maniqueísta...

Coloca o homem como vítima inconsciente de um sistema que não tem uma origem nem um fim específico (o sistema mantém o sistema). Vou mais para o lado de Foucault entendendo que o homem é um colaboracionista ativo de um sistema que produz diferenciação...

Somos um espécie homogênea que procura, incessantemente, a diferenciação. Apesar de não haver duas digitais iguais em todo o conjunto de 6 bilhões de habitantes, também não há nenhum que tenha nascido com três olhos...rs

Precisamos de símbolos, de objetos, de coisas que nos diferenciem. Estamos incessantemente buscando isso. Não quer ser massa, quero ser indivíduo...

Essa é a corrida frenética (sentimento) que sustenta todo o nosso sistema. O capitalismo (e o marketing, consumo etc) são apenas formas de materialização deste desejo humano...

ubiratangeo · Osasco, SP 3/11/2007 10:12
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ubiratangeo
 

E em relação a Nietzsche a citação é propícia. Por conta deste fato (termos mais semelhanças do que diferenças) e pelo desejo de escapar dele (atravessar a ponte da semelhança para a diferenciação completa) estamos sempre em meio a um abismo...

O abismo do preconceito, do orgulho, da discriminação, do homicídio, do genocídio...

ubiratangeo · Osasco, SP 3/11/2007 10:17
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Paulo Fehlauer
 

Um belo texto, mas um tanto hermético, eu diria.

Paulo Fehlauer · São Paulo, SP 3/11/2007 19:11
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Marcos Goulart
 

Gostei muito do texto, e da sacada sobre NIetzsche no final... Não sei se estava em suas influências, mas notei um quê de Jovem Marx, aquele dos Manuscritos...

Marcos Goulart · Porto Alegre, RS 3/11/2007 20:10
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Lucio K
 

observe as diferenças entre "emergir" e "imergir", e "ocaso" e "acaso"..;)
Vc tem potencial, continue. Evite afirmações excludentes, elas são fatalmente frágeis.. Ex: "
Somente líderes e artistas mantem resquícios de individualidade". é claro que nao, há muitos tipos de "outsiders" da cultura que também têm individualidade.

Lucio K · Rio de Janeiro, RJ 18/11/2007 22:39
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
Jornalista81
 

Olá Lúcio,
Obrigado pelo seu comentário no meu texto "Pequeno Exemplo Cósmico do Caos"

Concordo em parte com você.
Sobre emergir, o significado está correto. Sairá a superfície.
Sobre OCASO, o significado também está correto. Eu sei qual é a diferença entre um ocaso e um acaso. Ocaso, no contexto, significa "por do sol", "têrmino". E o "homem" que somos é o pôr-do-sol de um período da existência, para um próximo período, mais evoluido (o texto se refere a esta evolução como Super-homens)

E sobre o trecho "resquícios de individualidade", também acho que soou bastante excludente. Concordo com você.

Obrigado

Jornalista81 · Brasília, DF 19/11/2007 16:36
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Lucio K
 

ah, certo, nao tinha entendido.. me perdoe então. Achei que fazia muito mais sentido "o cidadão trabalha exclusivamente em função da cidade enquanto IMERGE em ostracismo e torpor hipnótico" e "O que pode amar-se no homem é que ele é uma transição e um ACASO"
abs e obrigado pela atenção

Lucio K · Rio de Janeiro, RJ 19/11/2007 17:49
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