[ um dia na quitanda ]
Depois de sete anos de casamento você acaba sentindo falta de afundar no colchão com alguém. Acordei pensando em Luca, na nossa separação e também na custódia da minha solteirice que ficou no cartório. Quando casamos abrimos mão da nossa certidão de nascimento, a partir daà só retiramos certidão de casamento, de divórcio, óbito, esta última alguém tirará por você. Chega a ter um tom trágico isto, parece uma espécie de morte. Você mata um ente solteiro e contrai o matrimônio. Lembrei do Casamento de Lily Brown, deveria ter selecionado esta música do Chico para tocar na nossa cerimônia, funcionaria bem na pista:
“Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no Dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais felizâ€
- Você deveria ter feito uma cópia. Disse-me Rita escolhendo pitangas para uma geléia.
- Não sinto falta de um pedaço de papel, é puro melodrama. Estou gostando desta persona de vÃtima interpelada. Ele saiu de casa e decidiu que a culpa seria minha por uma suposta paixão que secretamente eu sentiria por outra mulher. Sabe, ainda acho que ele implantou esta discórdia só para sair de fininho. Homens! Falava e cutucava uns melões - aprendi a levar o mais maduro possÃvel porque descobri que eles não amadurem nem embrulhados em jornal, contrariando o que minha mãe me ensinara – vou levar dois mesmo sabendo que são indigestos para mim.
- E você pretende evitar o assunto até quando?
- Por favor, você também? Eu não sei porque todo mundo resolveu me jogar contra a parede. A verdade é que eu havia me posto em tal situação e acuada não conseguia pensar em nada além de fugir de conhecidos. Foi a melhor ideia que tive por enquanto. Encontrar Rita foi culpa do acaso e da nossa rotina de comprar frutas nas quartas-feiras pela manhã naquele lugarzinho simpático no nosso bairro.
-Você é tão esquiva. Pare um pouco e pense comigo. Você acabou de sair de um relacionamento longo que supostamente era um equÃvoco...
- Eu não diria um equ...
- Um minuto. Segurou no meu braço com carinho e pitangas para não parecer grosseira ao interromper minha interrupção. - Você sempre emanou uma coisa diferente. Falava e espremia as pitangas, suco de pitanga é mais caro, eles deveriam cobrar por isso, eu cobraria. Continuou - Ninguém sabia explicar o que era, uma complacência, um “seu-certo-ar-sem-julgamentosâ€, agora acho que era a sua homossexualidade aflorando. A saÃda de armário mais lÃrica que já se viu, pelo menos a mais suculenta, achei a pessoa certa: Rita Pitanga!
- Rita, você coloca as pessoas num pedestal, é difÃcil suportar a pressão.
- Eu sei do que estou falando, conheço você desde os seus 6 anos, por favor, tem que me dar um pouco de crédito aqui. Deixe-me terminar...Eu dei razão à Rita, mas só porque sabia que ela diria tais coisas doces sobre mim. Jogava essa espécie de jogo do precavido. Só perguntava algo quando sabia que a pessoa me responderia o que eu queria ouvir. Amadureci pelos atalhos e indução de pesquisa é a melhor maneira da curva pender para o meu lado.
- Tudo bem, mas eu estou ficando com medo do rumo desta conversa. Respondi fazendo minha careta tradicional de - lá vem bomba!
- Já percebeu que suas afobações voltaram para os padrões de antes? Bom, a gente fala deste assunto depois. Voltando para o Luca, o que você realmente sentia por ele? O que aprendeu com seu casamento?
- Rita! Por acaso alguém casa para aprender alguma coisa? Aprendi que sempre é mais fácil conduzir o barco se estivermos no remanso. Fiquei desconfortável com a pergunta, ninguém sabe realmente qual a origem dos próprios sentimentos, mas não há quem negue senti-los. Era o que eu achava e prossegui falando sem conclusão:
- Casei apaixonada, sempre ficamos bem juntos. Luca e eu, protegidos um na companhia do outro. Ele era uma espécie de meio escudo convexo e eu a outra parte, juntos formávamos uma grande redoma antichatice. Éramos perfeitos.
- Só que não bastou. Disse-me sem remorso e sem desviar o olhar, era sua maior virtude. Rita sabia incrustar suas frases na nossa mente através desses raios gamas emitidos por seus olhos em brasa, eram de uma contumácia paralisante. Se ela fosse um bicho peçonhento seria daqueles que hipnotizam as vÃtimas para depois darem o bote.
- Para mim bastava. Resmunguei acanhada.
- Vai continuar negando que estava exausta?Era só olhar para você para fazer uma estimativa de quando iria acabar. Minha surpresa não foi o fim, mas quem tomou a decisão.
- Qual o problema com vocês, pessoas? Acabo de ser lançada para fora de um carro em alta velocidade, e ainda tangencio uma curva maluca que não me faz chegar em lugar algum... A iminência da mudança é o pior lugar para se estar, acredite em mim!
- Eu sei, você está ansiosa. Está tomando alguma coisa? Atacou-me meio sonsa. Odeio quando dizem que estou ansiosa, fico nervosa, contidamente nervosa. Tenho esta paciência bovina, nada me demove.
- Não, minha ansiedade é normal, com um fato gerador especÃfico. Além do mais, meu problema com a serotonina é outro. Esta eu respondi tremelicante.
- Você deveria trocar de médico, um ansiolÃtico a ajudaria.
- Mudar de médico para arranjar um que me prescreva o que eu quero e não o que a sociedade cientÃfica - DSM-IV, Eixo I - sugere para o meu caso? Você me assusta à s vezes. Preciso ir.
Não precisava, mas quando a conversa espirala para assuntos assim prefiro não ficar, volteios me exaurem. Minha cabeça começou a doer, vou comprar analgésicos na volta para casa, acho que sou a única pessoa que tem receita para analgésico na bolsa. Ela me deu um daqueles seus abraços revitalizantes e demorou em me soltar. Fiquei olhando Rita se distanciar até dobrar a esquina. Qual teria sido a primeira esquina dobrada? Fiquei imaginando uma cidade sem quinas ou então uma outra com ex-quinas com todas as ruas esticadas numa lógica macarrônica muito louca. Um desenho possÃvel seriam ruas espiraladas, só não sei se seria mais prática uma superespiral enovelada ou uma outra plana e sem fim. Chutei uma maçã caÃda para debaixo da bancada enquanto ganhava a rua. Alguém poderia se machucar, eu quase tropecei.
Rita saiu da quitanda só com as pitangas, eu com dois melões e todos os grilos.
[ a pingadeira ]
Queria saber realmente qual o problema com nuances, daqui só vejo cores chapadas e vazias. Muitos deveriam girar o disco de Newton, comporiam melhor suas tonalidades. IncrÃvel é lembrar dos pós-impressionistas enquanto azedo esta renúncia. Se tivesse dinheiro para um quadro famoso compraria Noite Estrelada de Van Gogh ou o Abaporu de Tarsila? Este está com um milionário argentino, deveria ter casado com um.
Hétero ou homo? Para Kinsey há uma escala com sete graus de tendências sexuais sendo o zero totalmente heterossexual e o 6, totalmente homossexual. Estou definitivamente acima do 3. E quem vai contar aos porcos chauvinistas?
Cada dia uma parte do casulo se solta, mas me sinto uma matrioska sem fim. A versão que vai predominar será a maior que engloba todas ou a menor oprimida por todas?
Chove e olhando para o prédio em frente ao meu lembro das pingadeiras. São elementos arquitetônicos usados em peitoris ou telhados para evitar o refluxo das águas de chuva. CaÃram em desuso.
Assunções e desvelos parte 2.
Esqueci de colocar a data no rodapé. Terminei este escrito em 12/03/2010.
Ana Cris · São Paulo, SP 13/3/2010 09:55Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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