Ouça bem, senhor doutor: não sou poeta nem pintor surrealista ou expressionista, porque não vivo à toa nesse mundo de estupor e exclamação. Também lhe digo que não creia em poetas, porque inventam sentir coisas, como se tomassem beberagens de ayahuasca na floresta. O amor que vem de dentro e todas as cores do mundo são ilusões e invenções de tolos para tolos. São as bruxas de Salém.
E veja bem, doutor, que tudo o que está dentro em mim não passa por ninguém mais. A sua caneta e o seu papel servem para quê? Digo que não servem para descrever nem catalogar a minha natureza, mas para aumentar a dose da pÃlula – aquela que ameniza os sentidos e me faz cambalear e dormir como animal no zoológico.
Não desvie o olhar de mim quando estiver falando. Eu sou o que sou – e não sou nenhum deus ou profeta da BÃblia, do Alcorão ou da Torá.
Acredite: não sou um daqueles loucos que perambulam soltos por esses corredores, nem um daqueles outros dementes, isolados em celas, que sonham com o vôo magnÃfico da torre para os sóis e luas brancas, com asas de Ãcaro e de Ismália.
Desculpe se o doutor não reconhece a poesia que tanto me repulsa, com seus simbolismos idiotas. Desconfio, ainda mais, que não sabe da mitologia ancestral – o que é perdoável para os homens de hoje em dia. Sendo crente ou ateu, da forma que mais convenha a si ou à ciência, como poderá um homenzinho distinguir Noé de Gilgamesh, com seu dilúvio babilônico, se a mesma água parece ter engolfado a amaldiçoada terra em tempos esquecidos?
Sendo louco, como diz o doutor que sou – e o que escreve essa caneta não há borracha que apague –, posso falar que está à minha frente um homem lascivo... – não, não se levante ainda – um homem lascivo que só pensa, na solidão da noite, em despir mulheres e fingir desinteresse ao apalpar seus peitos intumescidos e suas valvas de conchas entreabertas.
Fique mais algum tempo nessa cadeira – como estou, sem escolha possÃvel, há tantos anos nesta cela imunda – e ouça a minha verdade, sem nenhuma palavra de sua caneta-tinteiro.
Algum dia lhe disse que posso voar por sobre a cidade? Pois lhe digo que tenho meios e vigor para sobrevoar todo o mundo, tanto quanto, ou mais agora que no inÃcio de tudo. E fique bem claro que não vou seguir a danação humana de Ãcaro, porque um leve bater de asas me levaria daqui à Cólquida, onde ainda estão minhas irmãs harpias.
O senhor doutor, homem da ciência e das curas, algum dia já imaginou que os loucos são os verdadeiros sábios deste mundo de fracos? Que as tarjas pretas dos seus remédios são vendas nos olhos de quem vê o que de fato existe à sua volta? Ah, doutor... é essa a pequenez dos homens e a ruÃna da terra.
Toda memória se dissipa nesse mundo de bestas, ao menor sopro de vento sobre as areias soltas do deserto. Era ainda manhã na história do mundo quando levantavam moais em Páscoa e ritualizavam o fogo em Stonehenge, temendo o poder que assolava plantações. Alguma vez o doutor já pensou sobre as inscrições gigantes do deserto de Nazca, que só podem ser vistas do céu? Era naquele azul que eu voava livre, recolhendo oferendas frescas, ou onde mais houvesse carne e sangue, chegando aos picos gelados das montanhas do Cáucaso, dos Cárpatos e dos Pireneus. Ali alguns valentes cavaleiros resistiram à força das minhas asas e ao calor do meu sopro de fogo.
Mas hoje é a noite lhe que resta, senhor doutor. O seu louco vem de muito andar e rodear a terra antes de apodrecer preso nesta cela imunda. E não me surpreende que um homenzinho não possa compreender como vivem divididas força e impotência dentro dessa pequena casca de insensatez.
--- Para ler o arquivo completo, clique no botão de download.
excelente!!!!
Parabéns, Jairo.
uma narrativa bem feita que prende o leitor até o final!
abraços,
Parabéns, Jairo! Muito bem escrito! Parabéns, novamente!!!!!!!!!!
Um abração!
Jairo, um desafio e tanto. E não me espanto de que quantos são ou serão doutores a se encontrar, contar a carecer de ouvir - quer seja alguns ditos loucos, ou loucos mesmo; mas principalmente a ouvir os não letrados do mundo.
um abraço, andre.
Obrigado pela visita e pelos comentários, Marcos, Vanessa e André.
Jairo Oliveira Ramos · Aracaju, SE 26/1/2008 09:52ótimo texto, votado
gabriela chaves · BrasÃlia, DF 26/1/2008 11:32
Jairo,
Texto impecável.
E com uma bagagem cultural imensa. Prende realmente a atenção. Quase imagino uma peça feita com esses seus personagens, rs.
E... você me lembrou uma poesia que eu tinha esquecido... Ismália. Obrigada.
Beijo.
Obrigado pela visita e pelo voto, Gabriela.
Jairo Oliveira Ramos · Aracaju, SE 26/1/2008 21:43
Regina, obrigado pelo comentário elogioso.
Eu tive raras oportunidade de conversar com pessoas declaradamente insanas. Uma delas, graduada em direito e filosofia, teceu vastos comentários sobre a história das religiões. Por isso, talvez, meu personagem tenha desenvolvido essa caracterÃstica, incorporando verbetes de enciclopédia e alguns temas religiosos.
Ótimo texto Jairo, conto bem rico e inteligente, nos faz avaliar pontos. Muito boa a ficha técnica também
Votado com prazer mesmo!
Obrigado, Cintia, pela avaliação e pelo voto. Corrigindo o que está registrado para Regina: "raras oportunidades".
Jairo Oliveira Ramos · Aracaju, SE 27/1/2008 00:08Votei caro Jairo. Vc. pode voar sobre a cidade. Enquanto dormes, a sua alma brinca! Volita no universo. Parbéns overmano!
raphaelreys · Montes Claros, MG 27/1/2008 15:13Obrigado, Zirigdum e Raphael.
Jairo Oliveira Ramos · Aracaju, SE 27/1/2008 18:09Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!