João Marcos viu a coisa. Era a segunda vez que ela aparecia, no mesmo horário. Era do tamanho de um boi, tinha uma cabeça de leão, mas flamejante, e o corpo de um avestruz, pingando de molhado. João Marcos ficou paralisado olhando pra ela. Da primeira vez foi pior. Ele se perguntava se estava no inferno ou se aquilo era Deus. Mas porque a coisa não lhe matara antes e mataria agora? Então relaxou. Bem, nem tanto. A figura era pra lá bizarra e o fitava nos olhos com interesse. Mas com o tempo, João Marcos passou a ignorar a criatura e deitar-se para o outro lado. Às vezes ele esquecia e, durante a madrugada, virava para o lado da porta e lá estava ela, parada, com seu olhar interrogativo. Mas pernoitar noite após noite é que não dava. E o bicho ficava lá, quietinho, quietinho. Que mal tinha, né?
Um belo dia, João Marcos foi para o trabalho, como sempre. Estava no ponto esperando o ônibus quando de repente apareceu a coisa do outro lado da rua, com sua cabeça flamejante e seu torso pingante. Nosso amigo arregalou os olhos, quase se rendendo ao desespero, mas ao notar que ninguém ao seu redor via a criatura, se recompôs, ajeitou a gola da camisa e fez que não era com ele. Pelo contrário, empinou a cabeça e passou a fitar a criatura com um ar desdenhoso, cheio de empáfia. Então a criatura mostrou os dentes. Eram tantos, tão grandes, afiados e alvos que causavam quase tanta admiração quanto pavor. João Marcos ficou aterrorizado. Se contorcendo de pavor, abordou um rapaz que estava ao seu lado:
- Que... Que... Que horas são, por favor?
O rapaz estava com fones nos ouvidos, mas João Marcos não percebeu. E, com os braços estendidos para o alto e as mãos crispadas, soltou um berro que a rua inteira ouviu:
- Será que alguém pode me dizer as horas, pelo amor de Deus!?
Todos imediatamente viraram as cabeças em sua direçao. O rapaz arregalou dois olhos do tamanho de frigideiras e respondeu atordoado:
- São... São... São quinze pras sete.
Mas quando João Marcos voltou a olhar para o outro lado da rua, a criatura não estava mais lá. O ônibus chegou e ele embarcou debaixo dos comentários injuriosos dos demais passageiros. Diziam, entre outras coisas, que os viciados hoje em dia usam terno e gravata e se drogam às sete da manhã.
Chegou ao trabalho branco como um toco de vela virgem e sentou em sua mesa sem cumprimentar ninguém. Todos estranharam aquela atitude do sempre falante João Marcos. Percebeu então que precisava disfarçar seu estado de espÃrito, pois do contrário seria obrigado a explicar todo o acontecido. E quem, em sã consciência, não lhe consideraria - como posso eufemizar – um desprovido de discernimento cognitivo? Enfim, sorriu, cumprimentou, entrou no papo, contou piada, falou do Big Brother, do jogo do Vasco, da corrupção, do crime hediondo da semana e sentiu-se bem novamente. Mas depois de alguns minutos aquela “imgem da besta†retomou seus pensamentos. Pensou em desabafar com alguém, mas quem? Bom, já que era pra desabafar, teria que ser alguém que a princÃpio acreditasse em seu relato. Não podia ser o Leonardo, que jurava de pé junto que o homem não foi à lua, que a bomba atômica não existiu, que Paul Mccartney é um sósia e que a Terra não gira em torno do Sol. Mas acreditar só também não bastava. David, que era evangélico, diria que se tratava de um demônio que precisava ser exorcizado. Já Paulinha, kardecista, diria que se tratava de um mestre espiritual vindo de outro plano. O Marcão, auto-denominado “macumbeiroâ€, diria que se tratava de um exú pedindo uns trabalhos. Ah, e ainda tinha a Zildete, metida a psicóloga, que com certeza interpretaria a criatura como algum desejo sexual reprimido que João Marcos sentia pela mãe. Pra ela, no frigir dos ovos, todo mundo queria comer a mãe. Então, João Marcos resolveu deixar como estava.
A criatura continuou aparecendo pra ele, mas o relacionamento dos dois voltou a ser amistoso. Ele não empinava a cabeça, ela não mostrava o arsenal dentário. Passaram-se uma, duas, três semanas nessa paz. Até que João Marcos recebeu no trabalho um telefonema da vizinha, informando que Débora, sua esposa, havia sofrido uma crise nervosa e estava internada. “Crise nervosa?â€, pensou, “Débora nunca teve essas frescurasâ€. No hospital, a enfermeira lhe disse que sua esposa estava bem. João Marcos encontrou a mulher tão sedada, que seus olhos giravam lentamente como uma roda gigante. Seu lábio inferior pendia da boca que exibia um leve sorriso abobalhado, dando-lhe um aspecto demente. Mas até que ela parecia estar se divertindo. “Se o pessoal do ônibus a visse agora, ia dizer que a gente forma um casal perfeitoâ€, imaginou. O doutor contou-lhe que Débora deu entrada no hospital com um quadro crônico de alucinação. Ela repetia aos gritos: “Tá pegando fogo mas tá pingano! Tá pingando mas tá pegando fogo!â€. João Marcos precisou de uma cadeira.
Em casa, depois de passado o efeito do sedativo, Débora chorava no ombro do marido.
- Fica assim não. Ela não é tão má. – iniciou João Marcos, tentando acalmar a esposa.
- Ela?!
- É, a criatura.
- Você... também.... – disse Débora, balbuciando.
- Aham. Aparece pra mim há tempos.
- Escuta aqui, João Marcos Silvério dos Reis! Eu não estou com humor para brincadeiras, tá me escutando? – explodiu a mulher. João Marcos respondeu com uma calma professoral:
- É do tamanho de um boi, tem cabeça de leão pegando fogo e corpo de avestruz pingando de molhado.
Débora ficou atônita com a descrição exata do marido.
- Porquê?! Porquê!? – disse ela caindo aos prantos. João Marcos abraçou-a forte.
- Não tem porquê, meu amor.
- Se essa coisa tá aparecendo pra gente, existe um motivo!
- Mas deixa ela quieta. Comigo nunca se engraçou. Quer dizer, mostrou os dentes uma vez, mas gritei tão alto que ela “pufâ€, sumiu.
- Você afugentou aquela coisa?
- Foi uma vez só. Mas eu não recomendo que você tente fazer isso, meu bem. Eu sou homem, sabe como é.
- A gente vai dar um nome pra ela?
- Eu gosto de “a coisaâ€.
- Ai, que falta de respeito! Se é pra ser assim, impessoal, eu prefiro “a criaturaâ€. É mais digno.
E assim, conseguiu tranquilizar a patroa. Ele acreditava que agora, finalmente, os três viveriam em paz. Deitou e dormiu como uma pedra. Não tinha criatura flamejante e pingante que o despertasse do sono. Mas ele tinha uma esposa. Acordou em plena madrugada com os solavancos que a mulher lhe dava para que acordasse.
- Ela falou comigo! – disse Débora, excitada.
- Falou? Falou o quê?
- Quer dizer, fui eu quem falei.
- Mas tinha que arrumar idéia!
- Perguntei por que ela aparece aqui.
- Nem conta que eu não quero saber. – e tapou os ouvidos com os indicadores. Débora retirou-os e disse:
- Ela falou que responde qualquer coisa, desde que seja você que pergunte.
- Ah, eu mereço essa agora! Tu que arrumou idéia, agora vai morrer seca de curiosidade!
- Mas tu não vai perguntar, não?
- E eu quero saber, pra perguntar?
- Mas é um bicho do outro mundo, que pega fogo e pinga água ao mesmo tempo! Sabe lá. Pode contar pra gente todos os segredos desse mundo.
- Se é segredo, não deve ser á toa. – disse João Marcos, virando-se para o lado.
- Mas tu não é homem, não?
João Marcos sentou-se na cama e olhou a mulher nos olhos, furioso.
- E o que tu quer que eu faça?
- Pergunta pro bicho por que ele aparece pra gente. Só isso.
- Deixa comigo. – disse João, deitando-se de costas para a esposa, encerrando a conversa.
Tentou voltar a dormir, mas não conseguiu. Só ficava pensando no que a criatura lhe diria. Não queria nem mesmo imaginar o que aconteceria depois que fizesse a pergunta. Não que temesse ser dilacerado pela dentição trituradora da fera. Temia era a resposta. O que o bicho iria dizer? Que João Marcos continuasse sendo quem é, vivendo a vida que vive, do jeito que vive, sem tirar nem pôr? Uma criatura de outro mundo não se daria o trabalho de ficar de pé na porta daquele quarto noite após noite por nada. Trazia com certeza alguma revelação transformadora, uma missão urgente ou questões inquietantes. "Mas que vá pro inferno você e sua mensagem do outro mundo! Quero a minha vida do jeito que sempre foi!", falou consigo e abriu os olhos. Lá estava ela: a criatura, com suas labaredas dançando sobre a cabeça como se fossem cabelos ao vento, o torso encharcado como se tivesse acabado de sair do mar. João Marcos levantou-se. A criatura o acompanhava com o olhar fixo e interrogativo. Pé ante pé, caminhou até o armário, de onde tirou um guarda-chuva. Aproximou-se da fera com o utensÃlio empunhado como se fosse uma espada afiada. O bicho permanecia imóvel e com o mesmo olhar sereno. João Marcos começou a dar-lhe pancadas na cabeça. Mais e mais pancadas, cada vez com mais fúria. Erguia e descia o cabo do guarda-chuva com toda força que possúia. Dava também estocadas para ver se furava-lhe o crânio. O sangue, de um azul fluorescente fortÃssimo que reluzia na escuridão, começou a espirrar por todos os lados, iluminando o quarto inteiro. O monstro não esboçava reação. João Marcos batia, gritava e chorava. Débora continuava dormindo, como se nada acontecesse. Finalmente o bicho bambeou, inclinou o corpo bizarro para um lado e tombou pro outro, morto. João Marcos, exausto, desabou sobre os joelhos em meio à quele lago de sangue luminoso.
Deste dia em diante, nosso divertido amigo não voltou a ver a criatura e pôde retomar de uma vez por todas sua agradável rotina de falar do jogo do Vasco, da corrupção, do Big Brother e do crime hediondo da semana. Vez por outra sua esposa levanta a questão sobre o quê a criatura revelaria, caso tivesse a chance de falar.
- Arre, - responde João Marcos - mas que mania de perguntação!
João Marcos viu a coisa. Era a segunda vez que ela aparecia, no mesmo horário. Era do tamanho de um boi, tinha uma cabeça de leão, mas flamejante, e o corpo de um avestruz, pingando de molhado. João Marcos ficou paralisado olhando pra ela.
diasrafael · Rio de Janeiro (RJ)
A Criatura
Um Texto impressionante, uma leitura agradável e curiosa que deixa um monte de interrogaçóes na gente. Nos prendeu a atenção na leitura e nos deixa uma bagagem de pensamentos.
Muito bom.
Parabéns
Tem muito mérito.
Abração Amigo
Tenho a honra de mandar pro banco
beijos e parabéns
Muito bom!
Tantas coisas que agente tem vontade de matar de vez em quando....
Mas...
Que será que ela responderia?....... hehehehe
Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!