ilustração Afernandez/2007
Eu sempre vivi aqui, desde que nasci. Mas a casa onde morei com os meus pais, era perto daquele lago. Hoje é tapera e só os patos dormem lá. Meu pai era uma criatura misteriosa, sonhava com estrelas, mundos distantes e patos. Desde pequeno ouvia meu pai dizer que construiria uma nova casa sobre este morro. Foram nove anos de trabalho duro - eu, minha mãe e meu pai. A casa ficou bela, sobretudo à noite, quando o telhado, o terreiro e o caminho formavam uma estrada branca – como leite. Reflexo do céu. Foi plano de meu pai fazer a nossa casa bem debaixo daquela estrada branca e prateada. Era rota dos patos, uma estrada noturna ficava de cabeça pra baixo e latejava muito. Meu pai dizia que era a estrada de leite e que estava ali desde que eu nasci – foi numa noite que chorei de fome e apertei com força o seio da minha mãe, jorrando aquele leite estrelado.
No inverno, as noites eram profundas, brilhantes, e seu peso caÃa sobre nossos corpos - geralmente deitávamos no chão do terreiro da nossa casa, lugar onde minha mãe desapareceu numa porta que se abriu no céu. Depois disso, meu pai ficou triste e seguiu seu caminho, sua rota, junto com os patos que migravam para o sul. Fiquei ali sozinho, à mercê do fluxo daquela estrada, que trazia coisas com o vento.
Um poderoso silêncio de pedra se apoderou de mim e da casa, transformando-a numa taberna na beira de um caminho. Eu ouvia uma voz que vinha da noite e que, repetidas vezes, dizia; “Juno, olha os deslimites das alturas; creia, esta estrada também tem um lado de dentroâ€. A voz foi um presságio das alturas.
Numa noite, aquela porta apareceu no espaço mais uma vez. Dela, saiu um homem que trajava roupas velhas surradas, tinha o couro enraizado pelo tempo, cabelos, barbas esbranquiçadas e se parecia com nada conhecido. Ele tossia luz, também falava em lÃngua de próton e nêutron, tinha o cheiro de malva e contava histórias sobre mares extintos e universos reais, com determinismo cientÃfico. Este andarilho das estrelas foi meu preceptor, seu lado de dentro atendia pelo nome de Vaziador. Com ele aprendi a ler céus, vácuos e também que todos os universos que circundam o Cosmos são feitos de vazios, grandes vazios, inclusive o próprio Universo.
Ocupei todo o meu desconhecer e formulei a teoria da não existência vã. Vaziador seguiu seu destino e partiu num pacote de luz pela mesma porta que chegou. Fiquei novamente exposto à desmedida do tempo que cruzava de arribação. Meu corpo iniciou uma mutação com resÃduos da vida anterior, preenchi todo o vazio do meu corpo com átomos de luz – virei um acelerador de partÃculas atômicas - e isso me permitiu fazer viagens inacreditáveis por universos demasiadamente atemporais, distâncias fabulosas em tempos inimagináveis.
A cozinha da nossa casa era ampla. Tinha um guarda-comida, fogão de ferro, antigos utensÃlios de cobre, tachos e uma enorme mesa com oito cadeiras de madeira. É justamente numa das pernas desta mesa que me mudei numa torrente de energia, que desintegrou meu corpo, adentrou no desvão e depois num átomo da madeira como uma nave, revelando aos meus olhos um universo repleto de mundos e criaturas alheios a meus anseios e conhecimentos. No interior de um átomo, na superfÃcie do elétron, numa charneca onde construà minha nova morada, pude observar um outro céu, vasto, com dois sóis, vários mundos e luas verdes, azuis e vermelhas, vizinhas ao meu. A nossa casa, lá fora, ficou só. Eu continuei dentro dela e aquele universo criou limo pelo lado de fora. O telhado e o terreiro ainda eram um espelho para a estrada de leite. Os patos continuaram em seus vôos matemáticos no silêncio noturno do inverno, todos os anos. Junto deles, meu pai, que carregava o tempo nas asas.
cont.abrir arq
Aquela porta, um holograma que se abriu sobre o céu de nossa casa inúmeras vezes e engoliu a minha mãe, se trancou para sempre. E, na ampla cozinha da casa, numa perna da mesa onde comÃamos juntos, emprestei um coeficiente de magia e me perpetuei. Foi o ovo da gênese, num sistema planetário de prótons, nêutrons, elétrons e quarks.
Fim
Conto um pouco triste. Leve, imaginário dentro da verdade para poucos.
Excelente teu jeito de narrar, criar pensando...é importante dizer: criar pensando...
Bacana. Salvei.
Conto que é uma jóia rara.
Envolvente mesmo...
Um dos melhores que eu já li, aqui.
Boa, Arlindo!
Abçs.
Sim!!!! É o ovo da gênese!!!!!!
Grande Arlindo das Belas Imagens!
Parabéns, meu velho. Continuas afiado.
Pensamento ligeiro de contador de causos...
Parabéns.
Muito bom, Arlindo. Gostei demais. Guarda-comida, fogão de lenha, terreiro, utensÃlios de cobre, patos... Me lembrou a casa da minha avó. Que bela história.
abçs.
Salve Cintia poetisa!
Isso mesmo menina! O imaginário dentro do real.
Muito obrigado poetisa.
abraços
Benny!
Meu amigo poeta!
joia rara me acendeu o dia. Obrigado mesmo.
Fiz algumas mudanças no texto - deixei mais claro sobre o mundo dos átomos.
saudações, meu amigo!
Castilho poeta dos pantanais.
Sempre gentil e companheiro. Aguardo a minha mangueira!
Saudações
Bonetti!
Vc nem é italiana!!!
Agradecido poetisa.
saudações pantaneiras
Comecei a ler e estou gostando... mas vim te dar uma sugestão:
abra espaço entre os parágrafos, para "arejar" o texto. Aà fica mais fácil ler, sem ter que ser "de um fôlego só".
Abraços!
Salve Robertinha!
Gostei da sua observação. Tem razão quanto aos espaços. Para fazer uma mudança agora, seria difÃcil, tentei colocar dentro dos 3800 caracteres. Ultrapassou e tive que finalizar num quadro de comentário. Veja!
Porém a sugestão foi aceita, farei isso no texto do arquivo.
Agradecido
saudações pantaneiras
Arlindo Fernandez [eclético artista],
Grato pelo convite, vim conferir o teu texto. Viajei...
E quanta beleza pude vislumbrar nesta mágica Estrada de leite. Nela, os reflexos vivos dos vitrais do tempo movem a tessitura dos teus sentimentos, materializando coágulos de estesia e transcendendo os horizontes da existência. Reminiscências, evocações e mitos conjuminam - de forma pura e espontânea - os espectros conceituais do palpável com as infinitudes da supra-realidade.
Um texto de estupenda estética! Onde refulgem vÃvidas imagens, a par da magnÃfica torrente ideativa do autor.
Tudo pleno de beleza!
saudações...
Grande Rubenio!
Depois que vc. chegou no overmundo, ficamos letrado.Gostamos de palavras aviciadas - risos.
Muito agradecido, meu amigo.
saudações...
geralmente deitávamos no chão do terreiro da nossa casa, lugar onde minha mãe desapareceu numa porta que se abriu no céu. Depois disso, meu pai ficou triste e seguiu seu caminho, sua rota, junto com os patos que migravam para o sul. Fiquei ali sozinho, à mercê do fluxo daquela estrada, que trazia coisas com o vento.
Instigante, cobra da gente a releitura, dá essa vontade de ler , ler e não tirar os olhos ou sair desta casa onde o vento trazia coisas...Truxe-me coisas, Arlindo....MagnÃfico. Votar, nem é preciso dizer, mas um conto de sonhos, mas de reais dores...Bárbaro.abçs.
Assim como jorrou o "leite estrelado" do seio encantado, sua imaginação transborda neste belÃssimo conto.
Sempre fico impressionada diantes da riqueza dos seus textos. É uma linguagem muito poética, criativa que prende ao mesmo tempo que permite o vôo da imaginação.
Gosto sempre do que você escreve.
beijos
"emprestei um coeficiente de magia e me perpetuei"
Falas a lÃngua das estrelas, numa criação fantástica.
P. S.:Belo eufemismo do desenlace maternal.
Eita... que não me canso de te ouvir através do que plasmas neste mundo tão digital! E viva a virtualidade, pois que sem ela, como iria eu, de tuas construções tão viscerais e profundas poder ficar sempre muito perto? Quantas vidas trazes para tantas histórias?! Bendita seja a mãe que te pariu.
Beijo na alma.
Muito doido véio...
Muito louco...
Muito 10...
Sul-realismo natural...
Extremismo da criatividade...
Alucinação sentimental do desejo interno de não ser careta, de não ser pego, de não ser ego, de ser livre de uma vida sem respostas, você criou na encosta, ao lado de uma linda estrada de leite, um lugar infinitamente livre e belo...
Obs.: Não cheguei nem perto de sua criatividade no dia em que tomei chá de cogumelos...
é lindo.
posso indicá-lo para ser lido no SARAU que vai acontecer aqui na minha cidade dia 1° de Dez. de 2007?
um abraço
puget
Arlindo,
estou impressionado com a beleza do texto. Este fragmento, e o texto em geral:
geralmente deitávamos no chão do terreiro da nossa casa, lugar onde minha mãe desapareceu numa porta que se abriu no céu, lembrou-me o que diz o estudioso das religiões, Mircea Eliade em "O sagrado e o profano- a essência das religiões". Segundo ele, a casa é a réplica do Cosmos, do universo, por isso é um lugar sagrado. No ambiente da casa há sempre um lugar, um santuário (no seu caso o terreiro), que funciona como fenda, como passagem do nosso mundo para o céu.
Parabéns!
Salve! Grande Arlindo!
Lisonjeado pelo convite para apreciar teu texto! Gostei demais! Principalmente a epopéia que ele cumpre, se desgrudando dos pais, do mundo, para enfim chegar ao ovo da gênese e os quarks da vida. O sujeito foi se desfazendo (e enfim perpétuo). Que beleza de jornada!
Grande abraço!
Arlindo, meu querido poeta tangerÃnico,
já nem lhe peço desculpas pelo atraso pra não ser chato, sei que você compreende. Olhe, desnecessário também dizer o quanto admiro sua capacidade criativa, novamente um texto belÃssimo, desde o tÃtulo. Mas, também, para ser honesto, na minha opinião, o trecho em em que o personagem transmuda-se num acelerador de partÃculas me pareceu um tanto súbito, deslocado mesmo do contexto. Ou talvez eu não tenha percebido algo. De qaulquer modo, o conto é primoroso, como todos que você escreve, mas me incomoda a partir desse pedaço - não sei bem porque. Da mesma forma, não colocaria o vocabulário final, por desnecessário e por reduzir o imaginário do leitor, impondo-lhe um caráter um tanto "didático" a um texto que é a mais pura e linda fantasia, feito de pura magia. Por fim, embora este não seja o espaço adequado, aproveito para lhe dizer que fiquei muito feliz pelo novo rumo de sua vida profissional. E vamos ao livro, amigo!
Um grande abraço.
E do leite que se afigura ao alto e põe estrada, diz-me minha mãe aqui por perto arrastando os pezinhos e neles seus 82 anos, e que patos sempre se revezam no vôo e sequer se bicam pela direção que assumem ou cedem, cientes que são, pela própria natureza, apenas patos em vôo.
E, no entanto, homem de deus, voam!
Como nos dizes e fazes voar em tuas linhas tão singelas e criativas de imagens e verdades.
Avante!
Nunca vi assim descrito, mas acho que todo mundo já imaginou os mundos subatômicos dentro desse mundo de pés de cadeiras. Viagem de primeira classe!
Jairo Oliveira Ramos · Aracaju, SE 25/1/2008 13:34
Brilhante caro colega ... muito feliz em conhecer teu trabalho ... parabéns ....
se puder dar um pulinho lá no meu canto
http://www.overmundo.com.br/banco/amoete
grande abraço . . .
Show de bola Arlindo.
Você é craque.
Abraços.
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