A forca

anacris 2010
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Ana Cris · São Paulo, SP
24/4/2010 · 0 · 2
 

[ o nó ]

Passei a tarde fazendo o nó do enforcado. Encontrei um arremate de carpete, uma corda, e nem sabia que tinha tanto conhecimento sobre o assunto. Assisti uma vez um desses programas de televisão que a gente assiste quando não tem nada mais para ver e aprendi que o enforcado deve morrer pelo destroncamento da cervical e não sufocado, o que seria mais doloroso. A morte como sentença é respeitosa, evitam-se barbáries.

Já para permanecer vivo não há concessões. Nenhuma facilidade. Ninguém encera nossos caminhos para que possamos resvalar sem arranhões. Nenhum esfuminho esbate a rigidez dos traços cruéis que nossa vida nos desenha às vezes. Somos um restauro em tela viva, os vincos anteriores ficam como índice de onde passamos. Sempre me pego fazendo esta avaliação: “Queria chegar até aqui?â€.

A campainha tocou e por causa de uma certa insanidade temporária atendi a porta com a forca recém feita na mão. Não conhecia a pessoa que me procurava, mas reconheci aquele olhar de piedade. Fiquei um tempo olhando aquilo na minha mão enquanto pensava no que dizer para desfazer o mal entendido:

- Não é o que você está pensando. - Desculpa maldita! - Só estava passando o tempo, se soubesse bordar, bordaria. Sei fazer forcas, então...Bom, como posso ajudá-la? Você tem certeza que está no lugar certo? Não me interfonaram e...

- Moro aqui. - Apontou para a porta em frente a minha. - Mudei há um mês e ainda não conheço ninguém. Pensei em me apresentar, mas não queria interromper, se bem que, foi melhor ter interrompido? Você não estava...? Ficou vermelha, nunca mais tinha visto ninguém enrubescer assim.

- Agora já tenho um bom motivo para estrear minha forca. Que vergonha! Não, não estava...

Levantei a peça e fiquei constrangida de novo porque a zeladora passou com olhos arregalados e eu gritei que era uma coisa para um acampamento. Não queria que ela se sentisse à vontade para se juntar a nós. Estava instigada com minha visita.

- Meu nome é Ana, prazer! Estendeu-me mão e sorriso.

- Eu sou a Bia, Beatrícia. - Fazia tempo não falava meu nome em voz alta, que estranho. - Pode me chamar como quiser. Entre. Eu posso ensinar-lhe a fazer uma destas. Deve ser útil para prender pessoas, algum invasor, ou alguém que a gente não queira perder. Bom, quero dizer, não precisa usar no pescoço, as mãos são boas para atar sem danos físi... -Deus, por que não consigo calar a boca? - Não tenho idéia do que estou falando. Por favor, não se assuste. Sei que você não vai acreditar em mim, mas a vizinhança é bem normal, tranquila. Eu é que sou a rainha da primeira péssima impressão.

Rimos e eu guardei a forca atrás do sofá. Esqueci de dizer-lhe que era a rainha da segunda chance também, mas iria parecer muito carente. Por que meu coração quer correr para fora do meu peito agora?

- Você mora com alguém?

- Sozinha, ou melhor, com o Bob, meu cachorro.

- É que eu vi...

- Meu ex-marido.

- Ah, já foi casada...

- Isso é ruim?

- Só se você ainda gostar dele.

- Não, nem sei se ainda gosto de ho...Você aceita um café? Faço o melhor por aqui.


Ela sorriu novamente e eu já me acostumei com sua figura simpática rompendo minha tarde enforcada. Mostrei a direção da cozinha e ela me seguiu. Parecia interessada em tudo, na casa, no meu cachorro, em mim? Será? Preciso da Rita, vou ligar para ela mais tarde, esse assunto não vai poder esperar o concílio da quitanda.


[ entrelaçamentos ]

Jamais supus que um nó pudesse ter tantas variações. Pode ser usado para matar, prender, salvar, pescar, enfeitar e atar. É como no “Ata-me†do Almodóvar quando a personagem seqüestrada, Victoria Abril, pede para Antonio Bandeiras, o seqüestrador, não deixá-la solta, senão fugiria. Lembrei o nome dos atores e não das personagens. Outros laços haviam sido construídos entre eles, mesmo que à espanhola.

Rita chegou, pedi para ela passar aqui em casa, é assustadoramente pontual. Trouxe-me um bolo de chocolate recheado com geléia de damasco e com cobertura de chocolate e nozes para gente tomar com chá de jasmim. Sei quando ela está preocupada comigo pela sofisticação do prato que ela me prepara. Fico a imaginando tentando arranjar ingredientes para dar mais sabor à minha vida assim como faz com os doces que me prepara. Nenhuma de nós tem filhos e acho que gastamos nossos instintos maternais uma com a outra. Já eu ajo diferente. Quando quero animá-la convido-a a conhecer lugares bonitinhos, aconchegantes ou especiais de algum modo. Por exemplo, gosto de tomar café com ela sentada num banco de praça que fica em frente a uma cafeteria na Treze de Maio, dá para tomar até um solzinho por lá. Às vezes subimos a Escadaria dos Ingleses, nem sempre está agradável por lá.

- Uau! Meu bolo preferido. Obrigada, Rita. Entre, vou colocar a chaleira no fogo. - Fiquei imaginando como introduzir o assunto e acabei atropelando meus pensamentos. - Conheci alguém.

- Como? Deus! Odeio essa conotação de milagre, mas fiquei feliz com a reação dela. Nos abraçamos.

- O nome dela é Ana, minha vizinha da frente. Será que ela nos escuta daqui? Já falei que sou meio neurótica? Olhei como se tivesse visão de raios-X e pudesse ver através da porta. Rita riu e emendou:

- Para de neurose. Começa a contar logo. Quero ordem cronológica e todos os detalhes sórdidos. Essa é minha Rita.

- Ela veio aqui outro dia para se apresentar. É nova no prédio e tirando a forca acho que causei boa impressão.

- FORCA! Bia, que forca?

- Fiz uma forca naquela tarde e...


- Meu Deus! O que você ia fazer? Você está bem? Ela chamou alguém para ajudar você? Preciso de um copo d’água. Alcancei-lhe um copo e tentei acalmá-la:

- Rita, volta para Terra. Eu não contaria esse tipo de coisa assim trivialmente. Não estava tentando me matar. Também não sei explicar porque comecei a fazer a forca. Lembrei de como era o nó e daí ficou pronto antes de eu conseguir me perguntar porque estava fazendo aquilo. Foi só uma distração de mau gosto. Sem simbolismos, eu acho.

- Péssimo gosto. Você me assustou. O que essa forca significa para você?

- Não sei. Esquece isso, vai?

No tarô o enforcado significa vida em suspenso, não morte. Pode ser sinal de mudança? Fiquei com vontade de consultar uma cartomante. Talvez fazer um curso de tarô. Uma amiga me disse uma vez que se você pedir para lhe ensinarem tarô o detentor do conhecimento não pode negar-se a passar os segredos adiante. Seria tão bom se isso pudesse ser aplicado em todos os ramos da minha vida.


[ anacris – 21/04/2010 ]

Sobre a obra

Desdobramentos parte 2

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Autoria
Ana Cristina de Souza
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Doroni Hilgenberg
 

AnaCris,

Você é boa em suspense
Acho que muitas vezes a pessoa solitaria antecipa certos acontecimentose age por instinto
mas para uma pessoa neurótica,outra neurótica é o pior dos remédios, por isso,que a visinha não seja...
bjs

Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 23/4/2010 17:20
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Ana Cris
 

não será, ou será de outro modo...ainda estou construindo ela. quero dar esperança à Bia...

Ana Cris · São Paulo, SP 23/4/2010 19:48
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