Ela vestiu a blusa e correu para o espelho. Precisava se certificar. Olhou-se demoradamente, de trás, de frente, de lado. Era uma miniblusa preta, de malha, gola alta, mangas cumpridas e justas. Não havia nada de especial na roupa e, no entanto, havia. Porque ela se olhou e pensou “será que dou conta disto?â€. Sentiu-se um pouco desconfortável com a sinuosidade da cintura, as ondulações do corpo bem-feito. “Em demasiaâ€, ela pensou, não porque temesse a feiúra, mas por amedrontar-se com a exuberância.
Antes de sair, consultou o filho. “Mãe, você está linda. Não precisa esconder a barriga. Além do mais, parece que você pesa só dez quilos.â€
Aquilo de pesar somente dez quilos lhe trouxe certo conforto. Era capaz de dar conta de “dez quilos de mulherâ€. Por isto, pintou a boca de vermelho, calçou as botas sobre a calça e saiu.
Ao chegar ao evento, o desconforto ressurgiu. Os olhares se desviaram para ela, e a sua barriga – única parte exposta – inibiu-se. Duas taças de vinho ajudaram-na a resolver o problema. Em poucos minutos, ela conversava animadamente com o grupo de amigos.
Havia sorrisos e uma sutil tensão. Não demorou muito para que ela entendesse o que estava acontecendo.
“Você não tinha uma blusa mais comprida para colocar, querida?†A pergunta veio de quem ela menos esperava, uma das amigas, aquela que considerava a mais cosmopolita, porque viajava muito e dizia apreciar o contato com culturas diferentes.
Estavam sentados no jardim e ventava um pouco. “É mesmo, você não errou de modelo? Não está com frio?â€, perguntou outra amiga, de meia-idade como a primeira. Ela respondeu que não, não estava com frio. E teve a sensação de que sua barriga assumira proporções maiores.
“Vamos fazer uma vaquinha e comprar uma blusa maior para ela.†A observação saiu da boca do homem que lhe enrodilhava a cintura sempre que a via, sob o olhar impassÃvel da esposa, a tal cosmopolita.
Num instante, um pipocar de gracejos tomou conta da roda. O grupo construÃa sua força, e ela sentia na pele, pela primeira vez, a boçalidade de um linchamento.
Buscou apoio na amiga mais próxima, mas ela, na sua fraqueza gorda, desviou o olhar para dizer: “Quem sabe a gente compra um pedacinho de pano e costura na blusa?â€
Ela não tinha vontade de responder nada. Agora, o grupo habitava outra dimensão. E ela via o seu avesso. Animais deformados, exibindo dentes escovados, brancos e reluzentes... que dilaceravam.
Estava assim, assombrada, quando um homem se aproximou por trás e lhe deu um beijo no rosto.
“Você está um arrasoâ€, ele disse sem vergonha, diante de todos. Ela riu alto.
“Que bom ouvir isso. Acho que era exatamente o que eles estavam querendo me dizer há pouco.â€
Ficou o silêncio.
Texto bastante semovente, legrou-me hoje,
georgesaraiva · Guarapari, ES 12/11/2008 14:16
Oi, Milu!
Seu texto retrata a realidade, a 'nossa realidade'!
Um abraço, amiga!
george e maria luÃsa,
a boçalidade não tem hora pra atacar. quis abordar o assunto a partir de uma miudeza. legal que vocês gostaram.
abs
Tenho certeza que ficou legal! Era inveja pura, beleza de texto!
victorvapf · Belo Horizonte, MG 13/11/2008 18:21
Milu.
Esses dias eu me senti exatamente assim, sem jeito, por ter colocado um vestido tomara que caia e curtinho, justo eu, sempre tão recatadamente retrô...
Mas sabe, acho que fiquei é linda...
Adorei o texto, gosto do jeito de escrever sobre gente como a gente.
Beijoca.
Milu, as pessoas às vezes se agridem quando percebem a coragem de outros...a blusa estava ótima! Bjos
Iva Tai · Manaus, AM 14/11/2008 12:52
Quantos de nós nunca sofremos algum tipo de linchamento moral, ao menos uma vez na vida, as pessoas geralmente olham somente para o próprio umbigo.
Bem lembrado este tema no teu texto..
E se alguém nunca sofreu este tipo de agressão que atire a primeira pedra..
Gostei e votei..
Abç...
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