A mulher do japonês - conto

arlindo fernandez
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arlindo fernandez · Campo Grande, MS
5/9/2007 · 120 · 20
 

A mulher do japonês

No Vale do Vazio morava pouca gente, inclusive eu, menino ainda – nem pêlos tinha. As coisas por lá aconteciam lentamente, até as nuvens voavam de ré, então, o dia tinha a espessura de uma folha seca que viajava no vento morno e, pra chegar no poente, ainda tinha um rio para atravessar. Assim, o tempo vadiava, vadiava.
Todas as casas tinham um pé de bocaiúva, prímulas, uma hortinha de peixes e todas ficavam na rua principal - até a mercearia do japonês, que vendia fumo, fubá, guaraná em pó e caixão para morto. Aquele vale era um lugar bem alegre, largado e vadio, mas todos os moradores se entendiam – o preconceito e as aranhas tinham sido banidos dali.
O idiota da vila anunciava a noite cantando ao longo da estrada e, quando as estrelas tiravam suas roupas, ele dormia sobre o telhado de alguma das casas enquanto a noite salpicava urina de orvalho em seu chapéu rasgado. Os homens capinavam a preguiça quando o sol estava a pino, depois bebiam cachaça de milho no bar do japonês e falavam em língua guató enquanto as mulheres cantavam em guarani e maceravam a mandioca até virar macarrão, para depois estendê-lo pelos varais para secar.
Os meninos e as meninas pescavam numa lagoa embrenhada de sapos e rãs. Depois, os moleques sondavam as pererecas e as jias das meninas, que fingiam ser apenas girinos. Viver naquele remanso de acontecimentos esculpidos no vazio era tarefa árdua de urutau e poeta.
Numa manhã, chegou por ali uma mulher estranha, com a pele e olhos iguais a um lagarto, e que comia ovos de orvalho. Tempos depois, a mulher se apaixonou pelo japonês e eles se casaram. Aniceto, o japonês, era um índio Uaiuai, que por razões desconhecidas ficara branco e, por isso, todos o chamavam de japonês. E nesta vastidão de monotonia, onde nada de incomum acontecia, todos vivíamos felizes por muito tempo. O japonês e sua mulher trabalhavam no armazém, onde ela fazia e vendia pastéis de lingüiça de surubim – os melhores do mundo. Todos apreciavam aquele acepipe com pimenta: João Rola-Flor, o benzedor, comia mais de dez – todos os dias – mas morreu logo em seguida. E assim foi. As pessoas não comiam mais os pastéis com medo de morrer. Aniceto e sua mulher chegaram no apogeu do vazio, e o japonês confessou que havia inventado aquela mulher para fazer ajuda em seus negócios e também na vida sexual – ele queria um filho com ela. Ninguém acreditou na história e a mulher foi entrando para lagarto até o fim - nem benzedor deu jeito. Dizem que ela vive no meio dos tiús até hoje.
Manoel era um menino magro, que parecia um mosquito de hospício. Ele vivia a céu aberto e sem camisa, mostrava a língua para pássaros, arrancava pétalas de sapos e tinha vício de espionar por dentro das pessoas – depois escrevia nas pedras com gosma de lagartixa para todos ficarem sabendo.
Menino endiabrado, me convidou para assustar a lua no lago. Saímos de mansinho. Pra lá de meia-noite, topamos com uma figura desfolhada que remava rumo ao vale - nunca enxergamos seu rosto. Naquela noite, dona Zebina morreu e noite após noite morria um dos velhos moradores – sempre depois da visita do remador. Tenho segredos com Manoel. Numa noite escura furamos a canoa daquele estorvo e tapamos o buraco com sabão de cinzas. Canoa e canoeiro foram parar no fundo do lago lamacento de bagres. Para aquelas bandas, hoje só nasce criança de dupla e ninguém morre.
Sempre encontro Manoel fazendo arranjos para canto de tucanos pelas ruas de Campo Grande. Outro dia perguntei se ele lembrava da mulher do japonês. Ele respondeu em Fellini. -Claro que recordo, a mulher do bugre Aniceto, aquela que virou “largatoâ€!
Foi bem assim.

Fim.



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informações

Autoria
arlindo fernandez
Ficha técnica
arlindo fernandez contos

uaiuais - grupo de índios que habita o norte do Brasil - Roraima na fronteira com Guiana (área indígena Wai-wai).

Guató - O povo Guató é um dos cinco povos remanescentes que sempre habitaram em terras sul-mato-grossenses. Povo Guató constitui-se em um exemplo etnográfico de um grupo essencialmente canoeiro, os verdadeiros "índios d'água", senhores legítimos do pantanal. Autodenominam-se "canoeiros do pantanal".

Surubim - O Surubim é uma espécie de peixe de couro com hábitos noturnos. Apresenta a cabeça achatada, porém volumosa, tomando boa parte do seu corpo. Apresenta coloração cinza-parda, com pequenas manchas pretas arredondadas, inclusive nas nadadeiras. Tem longos barbilhões e o ventre esbranquiçado. Vive no fundo dos rios e sua carne é de excelente qualidade. É um dos maiores peixes do Brasil. Atinge um metro de comprimento e pesa de 6 a 8 Kg. Mas há registros de exemplares com mais de 2 metros e 100 Kg.

Urutau - Os urutaus são aves noturnas, que pertencem ao género Nyctibius e à família Nyctibiidae. Ele é encontrado no cerrado brasileiro, no Semi-Ãrido do Nordeste, na Amazônia e no Pantanal

Teiú - O gênero de répteis Tupinambis, da família Teiidae, chamados vulgarmente teju ou teiú, compreende os maiores lagartos do Novo Mundo (podem atingir até 500 mm de comprimento), e abrange sete espécies, todas nativas da América do Sul. São elas:
Teju-branco - T. teguixin,
T. rufescens,
T. palustris,
T. longilineus,
T. duseni,
T. quadrilineatus e
T. merianae.
São heliófilos, predadores oportunistas e generalistas, podendo consumir vegetais, artrópodes, outros vertebrados e carniça. Todas as espécies do gênero possuem parte da distribuição no território brasileiro.
O teiú também é conhecido por outros nomes como teiú-açu, tejo, tiju, tejuaçu, tejuguaçu, tiú e lagarto-papa-ovo




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Sérgio Franck
 

Gostei, Arlindo.

Sérgio Franck · Belo Horizonte, MG 1/9/2007 19:34
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arlindo fernandez
 

Salve Sergio!

Muito obrigado.Tenho publicado 18 contos - overmundo.
saudações pantaneiras do sul

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 1/9/2007 19:49
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lubraga12
 

Um texto impressionante, mescla de realidade e fantasia...palavras bem colocadas!!por vezes utópico e por outras trata da realidade...muito bom de se ler!!caramba que mente vc tem...rsrsrs

lubraga12 · Aurora do Tocantins, TO 2/9/2007 09:13
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arlindo fernandez
 

Salve lubraga!
Que bom que gostou.

saudações pantaneiras do sul

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 3/9/2007 17:57
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Nivaldo Lemos
 

Arlindo,

eis que de avatar renovado e prosa mesma de mato e rio, à la Barros, o outro Manoel, explodem imagens e pios de coruja na noite pantaneira do seu texto. Que nos deixa sem ar, Arlindo. Ar, lindo e cristalino tecido de palavras novas como cueiros embrulhando vocábulos de recém-nomeados sentidos, encantados como os medos que mergulham à noite em nosso sono e nos acordam pra beleza dos seus contos, como sustos de urutau à luz da lua ou galhos secos que descem rios verdes assuntando conversas de águas. E viram poesia arlindas, como esta Mulher do Japonês, que era índio de floresta e mato. Um primor, Arlindo. Estava com saudade do seu talento, amigo.

Um abraço e bem-vindo de novo ao Over!

Nivaldo Lemos · Rio de Janeiro, RJ 3/9/2007 18:39
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arlindo fernandez
 

Salve meu amigo Nivaldo!
Também estou com saudades, principalmente dos teus comentários.
Vou enviar o livro diagramadodo e ilustrado pra vc.(aguarde!).
bem que vc poderia tecer uma boa "prosa" pra gente colocar na "oreia" do bicho...().
saudações

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 3/9/2007 18:48
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Glaiddhe
 

Tu és muito lindo!!!! Através de teus contos e letras fico tentando vislumbrar tua alma, já que moramos tão distante, fisicamente. Obrigada pelo convite. Aguardo o livro de contos que prometeste enviar quando da publicação.
Beijos e cheiros!

Glaiddhe · Paulo Afonso, BA 4/9/2007 10:03
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Andre Pessego
 

Arlindo, muito legal, vou copiar pra ler , melhor reler.
Na década 70 /80 houve muita musíca no meio sertanejo
cantadas em circo, muitas até sensuradas, com o tema, muito legal, andre

Andre Pessego · São Paulo, SP 5/9/2007 04:56
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Robert Portoquá
 

Um belo e agradável passeio por terras, lendas, costumes, e almas brasileiras; que por ser tão fantástico impõe a meus olhos, de homem urbano, uma fantasia-real deliciosamente desfrutável.
Obrigado pela possibilidade de lê-lo!
Parabéns Arlindo, e um grande abraço.

Robert Portoquá · Adamantina, SP 5/9/2007 06:41
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Bia Marques
 

Salve texto bom no café da manhã, tinha tempos não te lia, quase esquecia o bem que me fazia...

Bia Marques · Campo Grande, MS 5/9/2007 06:56
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Cicero de Bethân
 

Salve! Rapaz, bom demais, senti uma psicodelia, uma força que nem te falo...
Tô de olho em você, gostei do teu esquema. Meus sinceros parabéns.
Abraço!

Cicero de Bethân · Vitória, ES 5/9/2007 09:22
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arlindo fernandez
 

salve Glaiddhe!
Esse "lindo" funciona como combustível...
Menina de Paulo Afonso, "o Tempo é Deus" - essa é minha máxima.
Imagino que a "alma" seja a somatória de tudo que vivemos e mais um tiquinho de fantasia.
saudações pantaneiras e cheiros de
flor de camalotes.
beijos

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 5/9/2007 10:17
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arlindo fernandez
 

A.Pessego
Muito obrigado e te convido pra ler alguns outros conto - já estão publicados no overmundo.
Saudações pantaneiras do sul

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 5/9/2007 10:20
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arlindo fernandez
 

Salve Portoquá!

fiquei triste pelo seu lamento - com muita razão. Pensando nisso foi que tentei colocar o significado de algumas coisas (para o leitor urbano se incorporar na história).
Muito obrigado e
saudações pantaneiras do sul.

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 5/9/2007 10:25
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arlindo fernandez
 

Bia!
Menina danada
.Pensei que no teu café da manhã tinha "merlot"!
Muito agradecido biazinha.
beijos.

Salve Cicero!
Muito obrigado pelo elogio.O combustivel para estas viagens - os contos e roteiros para cinema - vem de leitores,vem de críticas sinceras,vem do meu nascimento aqui por estas bandas e vem daqueles que estão de "olho" em mim...(rs. rs. rs)
Abraços
saudações pantaneiras do sul

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 5/9/2007 10:35
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acgt
 

Olá amigo, nós somos da Associação Campo-grandense de Grupos Teatrais - ACGT postamos no overmundo sobre o Fundo de Investimentos Culturais FIC/MS . Gostariamos do seu comentário
Abraços

acgt · Campo Grande, MS 8/9/2007 08:59
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jjLeandro
 

Olá, amigão. Estava viajando, por isso a tardança. Ainda não é para comentar, pois cheguei agorinha. Mas farei isso. Sabe que vc é um dos grandes que muito admirio aqui pelas postagens sempre de altíssima qualidade. abcs

jjLeandro · Araguaína, TO 9/9/2007 13:19
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Rangel Castilho
 

Salve, Arlindo das Belas Imagens!!!!
Se eu procurasse palavras, insossas seriam,
assim como adjetivos se esconderiam de mim,
com medo de mal versar tudo o que és!
Somente Arlindo pra dizer de Arlindo!
Salve, Arlindo das Belas Imagens!!!

Rangel Castilho · Anastácio, MS 12/9/2007 13:55
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Adroaldo Bauer
 

Arlindo,
Essa tecitura do real e do aparentemente fantástico resulta fantástica, ainda que real. E é bela.
Explico, amigo: é que, sendo, é, portanto, embora fantasia, a mais pura verdade.
Então o japonês era de aqui mesmo e a mulher não era o que parecia.
E queres que pare antes de chegar a última linha, que nem o fim é, posto que a finalidade está antes de cada ponto, e talvez em cada jogo intrincado/brilhante de palavras que constróis.
Queria ter dito apenas gostei, mas achei ser pouco.
Porque gostei muito, muito mesmo.
E nem foi com vinho, mas à janta.
Se já tens publicados, faço escambo com um meu.
Gostaria também de apresentá-lo em minha coluna em um mensário cultural daqui de Porto Alegre, o Fala Brasil.

Adroaldo Bauer · Porto Alegre, RS 23/9/2007 21:41
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arlindo fernandez
 

Salve Adroaldo!
Fico sempre comovido com seus comentários. São tão fantásticos quanto o que escrevo - o autor, aqui, precisa disso.Numa próxima oportunidade, leia com cabernet sauvignon ou merlot ...(risos)
o impacto será maior, uma vez que todos são escritos no calor da taça. (tenho um conto inédito "Sonhos de tangerinas", só pro livro).
Obrigado mesmo. Ainda não lancei o livro, mas faço um escambo sim.
Sua coluna é num Jornal? (minha esposa é jornalista e editora de um caderno de variedades "Correio do Estado" ).
Vamos trocar uns gibís!
saudações pantaneiras
saudações pantaneiras

arlindo fernandez · Campo Grande, MS 24/9/2007 08:06
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