A mulher do japonês
No Vale do Vazio morava pouca gente, inclusive eu, menino ainda – nem pêlos tinha. As coisas por lá aconteciam lentamente, até as nuvens voavam de ré, então, o dia tinha a espessura de uma folha seca que viajava no vento morno e, pra chegar no poente, ainda tinha um rio para atravessar. Assim, o tempo vadiava, vadiava.
Todas as casas tinham um pé de bocaiúva, prÃmulas, uma hortinha de peixes e todas ficavam na rua principal - até a mercearia do japonês, que vendia fumo, fubá, guaraná em pó e caixão para morto. Aquele vale era um lugar bem alegre, largado e vadio, mas todos os moradores se entendiam – o preconceito e as aranhas tinham sido banidos dali.
O idiota da vila anunciava a noite cantando ao longo da estrada e, quando as estrelas tiravam suas roupas, ele dormia sobre o telhado de alguma das casas enquanto a noite salpicava urina de orvalho em seu chapéu rasgado. Os homens capinavam a preguiça quando o sol estava a pino, depois bebiam cachaça de milho no bar do japonês e falavam em lÃngua guató enquanto as mulheres cantavam em guarani e maceravam a mandioca até virar macarrão, para depois estendê-lo pelos varais para secar.
Os meninos e as meninas pescavam numa lagoa embrenhada de sapos e rãs. Depois, os moleques sondavam as pererecas e as jias das meninas, que fingiam ser apenas girinos. Viver naquele remanso de acontecimentos esculpidos no vazio era tarefa árdua de urutau e poeta.
Numa manhã, chegou por ali uma mulher estranha, com a pele e olhos iguais a um lagarto, e que comia ovos de orvalho. Tempos depois, a mulher se apaixonou pelo japonês e eles se casaram. Aniceto, o japonês, era um Ãndio Uaiuai, que por razões desconhecidas ficara branco e, por isso, todos o chamavam de japonês. E nesta vastidão de monotonia, onde nada de incomum acontecia, todos vivÃamos felizes por muito tempo. O japonês e sua mulher trabalhavam no armazém, onde ela fazia e vendia pastéis de lingüiça de surubim – os melhores do mundo. Todos apreciavam aquele acepipe com pimenta: João Rola-Flor, o benzedor, comia mais de dez – todos os dias – mas morreu logo em seguida. E assim foi. As pessoas não comiam mais os pastéis com medo de morrer. Aniceto e sua mulher chegaram no apogeu do vazio, e o japonês confessou que havia inventado aquela mulher para fazer ajuda em seus negócios e também na vida sexual – ele queria um filho com ela. Ninguém acreditou na história e a mulher foi entrando para lagarto até o fim - nem benzedor deu jeito. Dizem que ela vive no meio dos tiús até hoje.
Manoel era um menino magro, que parecia um mosquito de hospÃcio. Ele vivia a céu aberto e sem camisa, mostrava a lÃngua para pássaros, arrancava pétalas de sapos e tinha vÃcio de espionar por dentro das pessoas – depois escrevia nas pedras com gosma de lagartixa para todos ficarem sabendo.
Menino endiabrado, me convidou para assustar a lua no lago. SaÃmos de mansinho. Pra lá de meia-noite, topamos com uma figura desfolhada que remava rumo ao vale - nunca enxergamos seu rosto. Naquela noite, dona Zebina morreu e noite após noite morria um dos velhos moradores – sempre depois da visita do remador. Tenho segredos com Manoel. Numa noite escura furamos a canoa daquele estorvo e tapamos o buraco com sabão de cinzas. Canoa e canoeiro foram parar no fundo do lago lamacento de bagres. Para aquelas bandas, hoje só nasce criança de dupla e ninguém morre.
Sempre encontro Manoel fazendo arranjos para canto de tucanos pelas ruas de Campo Grande. Outro dia perguntei se ele lembrava da mulher do japonês. Ele respondeu em Fellini. -Claro que recordo, a mulher do bugre Aniceto, aquela que virou “largatoâ€!
Foi bem assim.
Fim.
Salve Sergio!
Muito obrigado.Tenho publicado 18 contos - overmundo.
saudações pantaneiras do sul
Um texto impressionante, mescla de realidade e fantasia...palavras bem colocadas!!por vezes utópico e por outras trata da realidade...muito bom de se ler!!caramba que mente vc tem...rsrsrs
lubraga12 · Aurora do Tocantins, TO 2/9/2007 09:13
Salve lubraga!
Que bom que gostou.
saudações pantaneiras do sul
Arlindo,
eis que de avatar renovado e prosa mesma de mato e rio, à la Barros, o outro Manoel, explodem imagens e pios de coruja na noite pantaneira do seu texto. Que nos deixa sem ar, Arlindo. Ar, lindo e cristalino tecido de palavras novas como cueiros embrulhando vocábulos de recém-nomeados sentidos, encantados como os medos que mergulham à noite em nosso sono e nos acordam pra beleza dos seus contos, como sustos de urutau à luz da lua ou galhos secos que descem rios verdes assuntando conversas de águas. E viram poesia arlindas, como esta Mulher do Japonês, que era Ãndio de floresta e mato. Um primor, Arlindo. Estava com saudade do seu talento, amigo.
Um abraço e bem-vindo de novo ao Over!
Salve meu amigo Nivaldo!
Também estou com saudades, principalmente dos teus comentários.
Vou enviar o livro diagramadodo e ilustrado pra vc.(aguarde!).
bem que vc poderia tecer uma boa "prosa" pra gente colocar na "oreia" do bicho...().
saudações
Tu és muito lindo!!!! Através de teus contos e letras fico tentando vislumbrar tua alma, já que moramos tão distante, fisicamente. Obrigada pelo convite. Aguardo o livro de contos que prometeste enviar quando da publicação.
Beijos e cheiros!
Arlindo, muito legal, vou copiar pra ler , melhor reler.
Na década 70 /80 houve muita musÃca no meio sertanejo
cantadas em circo, muitas até sensuradas, com o tema, muito legal, andre
Um belo e agradável passeio por terras, lendas, costumes, e almas brasileiras; que por ser tão fantástico impõe a meus olhos, de homem urbano, uma fantasia-real deliciosamente desfrutável.
Obrigado pela possibilidade de lê-lo!
Parabéns Arlindo, e um grande abraço.
Salve texto bom no café da manhã, tinha tempos não te lia, quase esquecia o bem que me fazia...
Bia Marques · Campo Grande, MS 5/9/2007 06:56
Salve! Rapaz, bom demais, senti uma psicodelia, uma força que nem te falo...
Tô de olho em você, gostei do teu esquema. Meus sinceros parabéns.
Abraço!
salve Glaiddhe!
Esse "lindo" funciona como combustÃvel...
Menina de Paulo Afonso, "o Tempo é Deus" - essa é minha máxima.
Imagino que a "alma" seja a somatória de tudo que vivemos e mais um tiquinho de fantasia.
saudações pantaneiras e cheiros de
flor de camalotes.
beijos
A.Pessego
Muito obrigado e te convido pra ler alguns outros conto - já estão publicados no overmundo.
Saudações pantaneiras do sul
Salve Portoquá!
fiquei triste pelo seu lamento - com muita razão. Pensando nisso foi que tentei colocar o significado de algumas coisas (para o leitor urbano se incorporar na história).
Muito obrigado e
saudações pantaneiras do sul.
Bia!
Menina danada.Pensei que no teu café da manhã tinha "merlot"!
Muito agradecido biazinha.
beijos.
Salve Cicero!
Muito obrigado pelo elogio.O combustivel para estas viagens - os contos e roteiros para cinema - vem de leitores,vem de crÃticas sinceras,vem do meu nascimento aqui por estas bandas e vem daqueles que estão de "olho" em mim...(rs. rs. rs)
Abraços
saudações pantaneiras do sul
Olá amigo, nós somos da Associação Campo-grandense de Grupos Teatrais - ACGT postamos no overmundo sobre o Fundo de Investimentos Culturais FIC/MS . Gostariamos do seu comentário
Abraços
Olá, amigão. Estava viajando, por isso a tardança. Ainda não é para comentar, pois cheguei agorinha. Mas farei isso. Sabe que vc é um dos grandes que muito admirio aqui pelas postagens sempre de altÃssima qualidade. abcs
jjLeandro · AraguaÃna, TO 9/9/2007 13:19
Salve, Arlindo das Belas Imagens!!!!
Se eu procurasse palavras, insossas seriam,
assim como adjetivos se esconderiam de mim,
com medo de mal versar tudo o que és!
Somente Arlindo pra dizer de Arlindo!
Salve, Arlindo das Belas Imagens!!!
Arlindo,
Essa tecitura do real e do aparentemente fantástico resulta fantástica, ainda que real. E é bela.
Explico, amigo: é que, sendo, é, portanto, embora fantasia, a mais pura verdade.
Então o japonês era de aqui mesmo e a mulher não era o que parecia.
E queres que pare antes de chegar a última linha, que nem o fim é, posto que a finalidade está antes de cada ponto, e talvez em cada jogo intrincado/brilhante de palavras que constróis.
Queria ter dito apenas gostei, mas achei ser pouco.
Porque gostei muito, muito mesmo.
E nem foi com vinho, mas à janta.
Se já tens publicados, faço escambo com um meu.
Gostaria também de apresentá-lo em minha coluna em um mensário cultural daqui de Porto Alegre, o Fala Brasil.
Salve Adroaldo!
Fico sempre comovido com seus comentários. São tão fantásticos quanto o que escrevo - o autor, aqui, precisa disso.Numa próxima oportunidade, leia com cabernet sauvignon ou merlot ...(risos)
o impacto será maior, uma vez que todos são escritos no calor da taça. (tenho um conto inédito "Sonhos de tangerinas", só pro livro).
Obrigado mesmo. Ainda não lancei o livro, mas faço um escambo sim.
Sua coluna é num Jornal? (minha esposa é jornalista e editora de um caderno de variedades "Correio do Estado" ).
Vamos trocar uns gibÃs!
saudações pantaneiras
saudações pantaneiras
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