- Não volto mais pra casa! - ela gritou ao telefone, desligando-o em seguida.
Camila estava no último banco do ônibus, mochila no colo. Tinha uns vinte, mas aparentava quinze. Olhava o próprio reflexo no vidro da janela, sua expressão enfurecida.
- Merda! - dizia para si mesma - Queria chorar!
Chegou ao ponto final do ônibus por volta da meia-noite. Perguntou aos poucos funcionários que ainda estavam por ali onde poderia encontrar uma pensão ou lugar para passar a noite. Um motorista indicou-lhe um hotelzinho a duas quadras de distância.
- Lá só vai puta, - avisou o motorista. - mas é o único que eu conheço. Você é puta, minha filha?
- Não.
- Que pena.
Camila agradeceu e rumou pra lá. Chegou a um sobrado de fachada escurecida onde uma placa de letras mal pintadas anunciava a hospedaria. Bateu na porta de madeira quase podre, que só foi aberta algum tempo depois por um senhor baixo, magro, de ralos cabelos brancos e que pela expressão havia sido acordado a contra-gosto pelas batidas.
- Pensei que hoje eu teria um pouco de paz. - resmungou para si - O que você quer, minha filha?
- Um quarto.
O velho abriu mais os olhos que ainda se acostumavam com a luz para estudar a moça.
- Você não tem cara de puta.
- Eu não sou.
- Aqui só vem puta, minha filha.
- Eu sei, mas preciso de um quarto pra passar a noite.
O velho abriu a porta e os dois entraram. A recepção não passava de um balcão de madeira expremido ao lado da escada. O lugar inteiro parecia ter mal hálito.
- Você tem dinheiro, minha filha?
- Tenho.
- Muito ou pouco?
- Pra isso aqui, - disse ela olhando em volta - acho que muito.
- Então vou te levar à suÃte presidencial.
Subiram dois lances de escada e andaram até o fim de um longo corredor mal iluminado. O carpete era sujo. Havia guimbas de cigarro por todos os cantos. Era possÃvel distinguir a suÃte presidencial pela distância maior de sua porta para as outras. Era porta, porta, porta, não-porta, suÃte presidencial. Além disso, a porta era de uma imitação de mogno, enquanto as outras não passavam de um branco encardido.
- Esse aqui só é usado quando vem vereador, cantor... - disse o velho, orgulhoso, enquanto abria o quarto.
Na cama, uma mulher gorda aparentando seus quarenta anos, trajando um hobby que imitava pele de onça, ressonava como um anjo glutão. O velho, como visse um mosquito, deu-lhe um tapa de mão cheia em plena nádega direita que ecoou pelas paredes do quarto.
- Acorda, sua porca imunda! - gritou o velho - Quantas vezes já te falei pra não dormir aqui?! Na presidencial não!
A mulher levantou atordoada, começou a recolher o restante de seus trajes que estavam pelo chão e saiu porta afora, sem sequer levantar os olhos.
- Essa é a Diana. - explicou docilmente o velho - Mora muito longe. Quando não consegue programa deixo ela dormir por aqui.
- Mas não tá na hora dela pegar no batente?
- Devia ser o soninho da beleza. Hé-hé.
- Só troca o lençol, por favor.
- Você tá com fome, minha filha?
- Não tinha reparado, mas estou.
- Tem um bar na próxima esquina. É onde as meninas conseguem programa. Tem um bolinho de bacalhau muito bom. Vai lá enquanto eu limpo essa bagunça. Põe na conta do Seu Gerânio.
Camila desceu as escadas que pareciam ainda mais escuras que antes, saiu do hotel e passou a caminhar pela rua praticamente deserta. Só se via uma mulher que caminhava à sua frente. Era Diana, agora trajando um vestido de veludo vinho bem apertado e botas de couro pretas que iam até perto do joelho. Caminharam uma diante da outra por todo o quarteirão, quando Diana achou que estava sendo alvo de uma perseguição. Virou-se e trotou na direção de Camila.
- Qual é a tua, hein!? - gritou Diana. - Já me expulsou do quarto e agora quer o quê?
- Só estou indo ao bar que tem ali.
- Roubar meus clientes!
- Eu não sou puta.
- Eu também não era.
- Meu nome é Camila. - disse, estendendo a mão.
Diana não respondeu. Virou e se pôs a caminhar. Camila apressou o passo e emparelhou com a outra, que pareceu aceitar passivamente a companhia. Deram uma dúzia de passos caladas.
- Seu Gerânio disse pra eu beber na conta dele. - disse Camila.
- Sério? Faz tempo que eu não tomo um porre.
- Será que a gente descola uns Bloody Mary por lá?
- Minha filha, a melhor coisa do mundo é porre de cachaça.
No bar, um pagode brega tocava no último volume. O ambiente era pequeno e uma luz avermelhada banhava tudo. Não havia pista de dança. Existiam dezenas de mesas amontoadas, todas cheias. Era difÃcil entender como as pessoas chegavam e saÃam das mesas, tão juntas que eram umas das outras. Só haviam duas classes de pessoas: homens e putas.
- Essa aqui - disse Diana ao balconista, apontando para Camila - hoje tá na conta do Gerânio!
- Sei... Tô cansado das tuas conversinhas, Diana. - respondeu o balconista.
- Não vou gastar meu latim com você. Liga direto pro velho!
No minuto seguinte estavam degustando uma pinga lancinante. Camila deu uma boa golada e quase caiu para trás. Diana gargalhou.
- Cuidado, pituquinha. Isso é bebida de adulto - brincou.
- Mais uma! - pediu Camila com um tapa no balcão, depois de secar o copo num trago.
- Se eu me arrumar por aqui não vai ter ninguém pra te levar de volta pro hotel, hein?
- Ah, isso eu duvido.
Não demorou para que um homem se aproximasse. Era alto, parrudo, tinha pescoço grosso, cor caramelada e um grande vão entre os dois dentes da frente.
- Quem é a bonequinha? - perguntou o homem, referindo-se a Camila.
- Não é profissional. - respondeu Diana.
- Pra debutante eu pago o dobro.
- Em quanto fica esse dobro? - perguntou Camila.
- Cem pratas.
Camila soltou uma gargalhada.
- Nem fudendo, seu merda! - respondeu.
Tudo que viu foi a grotesca mão do homem erguendo-se no ar. Depois, breu e gosto de sangue na boca. Recobrou os sentidos no chão, recostada na madeira do balcão do bar. Alguém havia lhe arrastado até ali. Olhou ao redor. Todos bebiam, riam e cortejavam suas putas na mais perfeita paz. Ouviu uma gargalhada e olhando para cima viu os dantescos quadris de Diana sentada num banco. Levantou cambaleante e sentou-se ao lado dela. O homem parrudo estava do outro lado.
- Serve uma pinga pra moça! - disse o homem - e traz um pano pra ela limpar a boca.
O balconista trouxe um copo de cachaça e um paninho encardido. Camila virou o corpo na boca. Ardeu como o inferno. Ela gemeu.
- Nem fudendo... - repetiu o homem para si. E começou a gargalhar.
Diana também começou a rir. Camila tentou, mas a boca doÃa. Ficaram ali sentados, os três, rindo e bebendo até não se sabe que horas.
Camila acordou, ainda de olhos fechados, com duas dores ferozes lhe disputando, uma na cabeça - "Então ISSO é porre de cachaça?", pensou - e outra na boca. Pediu a Deus para morrer ali mesmo. Que fosse para o inferno, duas dores era demais. Sentiu peles geladas por todos os lados. Abriu os olhos e percebeu que estava na cama do hotel, Diana de um lado e o homenzarrão do outro. Um fedor imperioso enchia o quarto numa mistura asquerosa de suor, álcool e mofo. Não conseguia se mover. Estava soterrada por braços flácidos e pernas recheadas de banha. Os dois roncavam como um coral suÃno. Sentiu ânsia de vômito ao notar que a vagina ardia. Queria matá-los a golpes de pá de lixo, desentupidor de pia ou coisa menos glamurosa. Foi rastejando entre os dois corpos inertes para o hemisfério sul do colchão até conseguir sair da cama.
Ficou ali, de pé, nua, diante da cama, observando aquela pororoca do inferno. Riu. Olhou ao redor procurando alguma coisa até que achou a capanga de couro marrom do homem. Abriu e tirou cem reais. Depois pegou o telefone e discou um número de cabeça. Atenderam do outro lado.
- Agora sou uma puta, você ainda me quer? Tá, então tô voltando pra casa.
- Você não tem cara de puta.
- Eu não sou.
- Aqui só vem puta, minha filha.
- Eu sei, mas preciso de um quarto pra passar a noite.
Bem escrito. Bem acabado. Criativo.
Valeu.
Um abraço
RD,
Já havia lido e gostado.
Só resta iniciar a cerimônia "do vai pro trono".
Abs,
Muito bom. Leitura que flui e prende. Parabéns. Adorei.
Abs
de fino acabamento, maravilha.(votei).
O NOVO POETA.(W.Marques). · Franca, SP 27/7/2008 10:13
Belo texto. Bem elaborado. Gostei bastante.
Um abraço. Votado.
Walnizia
Lancinate! A la Bockowisky e seus ratos de esgoto. Muito bom!
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 27/7/2008 16:15
Beeeem bom, gostei e votei!
Fausto
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