Todo dia a mesma coisa. Ele já estava bem cheio, mas não adiantava nada reclamar. Era assim e pronto. Tinha que dividir o colchão (que já era bem pequeno) com o irmão menor.
Então, era aquele puxa-empurra a noite inteira e quando chegava de manhã ele estava morto de sono.
Vender bala e chiclete desse jeito, com o olho querendo fechar enquanto o homem no carro fazia cara feia, até que dava. Na escola era pior. A professora logo vinha com uma bronca quando o via dormindo com a cabeça apoiada na mesinha.
Ele saiu da escola no ano passado. A mãe não ligou muito. A mãe dele não ligava muito para nada. Só queria saber do dinheiro das balas vendidas, que ela juntava com o dinheiro do irmão e com o dinheiro dela para comprar comida e pagar o aluguel do barraco.
Ele saiu da escola sem querer sair. Era chato levar bronca da professora, mas lá ele fazia desenhos. Uns desenhos coloridos, que sempre eram elogiados. Os amigos tinham inveja dos desenhos dele. Não dá para dizer que eram desenhos perfeitos, porque não eram. Mas eram coloridos de um modo tão maluco que ninguém resistia.
Um dia perguntaram por que ele pintava os desenhos daquele jeito. Ele disse apenas “porque não é proibidoâ€. E ele falou isso com tanta verdade que a classe toda entendeu.
Foi nesse dia que ele fez a vaca azul. De rabo cor-de-rosa, ela teve a lÃngua (só a ponta que aparecia) pintada de amarelo. Uma vaca azul enorme e gorda. As patas ficaram meio viradas para dentro, principalmente as de trás. A cabeça ficou totalmente voltada para a frente, como se ela estivesse olhando para o desenhista. Os olhos eram verdes e o focinho, escancarado, era vermelho por fora e branco por dentro. Quase que dava para ver lá dentro algum resto de meleca de vaca.
“Uauâ€, fez todo mundo quando a professora pendurou o desenho na parede.
É a lembrança que o menino deixou na escola um dia antes de ter que ir vender bala e chiclete na rua.
Este texto faz parte de um projeto maior chamado "Toda Vaca", um livro de contos ainda inédito, escrito para jovens leitores, segundo a classificação em voga.
Como não fecho questão a respeito desse "rótulo", ainda que seja conhecida como "autora de literatura infanto-juvenil", resolvi publicar o texto aqui no Overmundo, para os "adultos".
A propósito disso, já ouvi comentários sobre este conto. Algumas pessoas o consideram muito forte ou triste para as crianças (mas as crianças podem sentir a tristeza, ou não?).
Eu, particularmente, acho que pode ser pra todo mundo.
Por último, um serviço de utilidade pública: se você gosta de vaca, não deixe de visitar o site dos cowtadinhos.
Ali você encontra os trabalhos de artistas que ficaram de fora da cowparade de Curitiba.
Milu, eu acredito que a realidade de uma criança não mais se esconde da realidade de outras.
Umas por vivê-la; outras, cujos direitos são garantidos, pelo acesso que têm à informação.
Achei tão comovente o desenho que, confesso, chorei.
Obrigada por mostrar aqui.
beijos
Puxa, Saramar... Nem sei o que dizer... Agradeço muito o seu comentário. E acho também que não se deve esconder a realidade de uma criança de outra. Elas vivem nos contando maneiras de ver as coisas de um modo diferente, com sensibilidade, inteligência e liberdade.
beijo
Oi Milu, lindo texto e que cativa adultos também. E assim como o menino do teu conto, quantas crianças se perdem sem ter a oportunidade de vir a ser futuros cartunistas não é? Sou Pedagoga e sinto quanto esta pobreza prejudica as nossas crianças. Meu voto, meu carinho e Bjsssss
Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 7/6/2008 12:14
Doroni, bonito o teu olhar pro mundo e pro meu texto...
obrigada,
bj
Muito triste, mas verdadeiro, sentro da fantasia devemos ter nuances da realidade. Perfeito e muito bom para todas as crianças....todos nó crianças-adultos...ab
Cintia Thome · São Paulo, SP 7/6/2008 22:15
Legal, achei de um bom enredo, uma boa apresentação
abraço
andre.
Inspirado, inspirador. Milu, que graça de conto. Sem pieguice vc a narradora olha pra criança sem paternalismo demagógico. Olha e sente.
Hei, tem a ver com a vacalêndia, né?
Adorei.
Adoraria ser capaz de escrever literatura infantil. Muito mais desafiador. Mias delicado. Precisa ter muito dominio da escrita, mesmo, sabe?
ah, sabe sim!
mille baci
haha. não, cd, nada de vacalândia aqui neste conto.
a verdade é que escrevi um outro conto de vacas pra minha amiga criadora daquele apartamento bovino. o projeto deste livro sobre vacas é antigo, tão antigo quanto minha amizade com ela. talvez a inspiração venha mesmo desse anos todos de amizade.
no mais, as vacas são mesmo irresÃstiveis. basta parar e observar. mas tem que ter paciência...
bjo
Os pequenos PrÃncipes
Literatura “infanto-juvenil†não existe. Seu texto deixa isso claro, assuntos pertinentes
batem direto nos adultos uma vez que estes adultos estão criando os futuros adultos. Crianças entendem muito bem seu mundo, só não entendem o descaso de alguns “adultosâ€, por isso continuam como adultos seguindo em frente e esquecendo a infância. Mas ainda assim vivem em um mundo só deles, pequeno e de sonhos.
Parabéns pelo texto, esta votado.
Abraço
Marco
oi, marco. obrigada pelo comentário. essa troca de idéias é o grande barato destes espaços, né? só que levanto a bandeira de um grupo aqui do overmundo em prol do slogan: "não precisa declarar o voto". acho que essa prática (de declarar voto) acaba pegando como praga e esvazia o sentido maior, que é a troca de idéias simplesmente.
não me interprete mal, fico feliz de ser votada, mas tenho votado em silêncio e deixado meus comentários por aÃ, quando acho que tenho alguma a coisa a dizer sobre o que vejo, leio, ouço. melhor ler um : "bacana", "concordo", "que baita!", ou "sai pra lá", "detestei", etc., do que um "votado".
vejo que você é do tipo que comenta, e pra mim é o que importa.
beijo
Lindo Milu. Só não gosto dum avisão um tanto moralista sobre a mãe do menino egresso da escola e que vende bala no sinal. Acho perigoso e moralista, um julgamento desnecessário colocar as coisas em termos de "ela não liga". Podemos discutir... Fora esse parágrafo, milu, acho o texto maravilhoso. Lembrei de minha professora no primário que sempre me dizia: cabelo verde? Não existe cabelo verde! Ela perdeu por esperar...
bj, Flávia
flá, eu não acho moralista, não. nem perigoso. é apenas um corte na realidade. acho que nem preciso dizer que há boas mães cujos filhos vendem bala nas ruas e que eu sei disso, né?
é uma escolha dizer isto ou aquilo. por que deveria dizer que a mãe do garoto é legal? por que optei por dizer que a mãe do menino não liga pra ele? talvez porque haja mães que não ligam (em famÃlias de classes sociais diferentes). acho isso mais dramático e perigoso do que qualquer outra coisa. no caso dele, é pior porque ele ainda tem de enfrentar a pobreza.
e deve haver mais um monte de razões por eu ter escolhido este caminho, algumas delas certamente não me passam ainda pela cabeça. o que posso afirmar com certeza é que nenhuma delas tem a ver com moralismo. e disso vc sabe também.
bjim
Ele saiu da escola sem querer sair...., Isso me comoveu muito Milu. Na escola esse menino podia ser criança não é mesmo? Com todas as cores da infância, onde vaca é azul, e os elogios são sinceros. "Uau" pra você Milu!!
Juana Correia · Londrina, PR 24/9/2008 11:58Gostei muito de seu conto, Milu. E criança não precisa ser poupada como andam propagando por aÃ. Também sou autor de "literatura infanto-juvenil", e o livro que lançarei no próximo dia 6, Belelê e Beatriz(quem não arrisca não petisca nem pega peixe sem isca), pela Aaatchim!, apesar da dose de humor é-seria bem "pesado" para as crianças. Mas na verdade não existe isso. Abraço.
Fernando Alsandálio · Nova Era, MG 16/3/2013 18:55Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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