Tinha 99 anos. O excesso de rugas dava-lhe certa simpatia. Os olhinhos miúdos e brilhantes. Uma leve e fina penugem meio-branca-meio-lilás na cabeça.
Não por falta de insistência dos filhos e netos, vivia só. Eles a queriam como a um formoso bibelô enfeitando a mesinha da sala.
Mas ela não sairia da sua velha casa, o seu cantinho, o único lugar só dela. Nem podia: esperava uma visita ilustre.
Passava os dias cantarolando antigas marchinhas de carnaval e regando as margaridas do seu pequeno jardim. Não era raro algum vizinho surpreendê-la aos rodopios com um par imaginário no meio da sala, ao som do velho disco na vitrola.
À tardinha tomava seu banho de espuma. Vestia-se com esmero, maquiava-se toda, a cor rubra nas maçãs do rosto e nos finos lábios. Colocava o broche de camafeu (lembrança do falecido marido) na gola do vestido de seda e calçava suas sapatilhas. Então se mirava no espelho, vaidosa, os lábios desaparecendo num largo sorriso:
_Você continua um brotinho!
E saÃa dando gritinhos de prazer.
Sentava-se na poltrona e ficava, sem pressa, à espera do visitante. Esperava-o há algum tempo e o esperaria por toda a eternidade.
A velhinha já começava a cochilar quando alguém bateu à porta. Era ele. Um jovem ruivo, olhos claros e dentes brilhantes. Com roupa de gala. Sedutor, sussurrou no ouvido dela:
_Vem comigo...
A velhinha era toda languidez:
_Só depois de uma valsa...
Colocou o disco na vitrola e começaram a dançar. Uma lágrima teimosa escapuliu daqueles olhinhos miúdos e brilhantes. Ele era tão bonito quanto o primeiro namorado, com quem valsara nos seus quinze anos...
Os violinos anunciavam o inÃcio daquela história.
Ela assistira ao filme em preto e branco de sua vida.
Finda a valsa, ele a conduziu por um caminho repleto de margaridas, e fê-la adormecer ao som de antigas marchinhas de carnaval.
Ela dormiu profundamente, os lábios desaparecendo num largo sorriso.
Sera a morte doce como uma valsa? Parabéns o conto tá ótimo.
Claudiocareca · Cuiabá, MT 4/11/2006 13:35Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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