Então era certo afirmar que ele tinha essa habilidade. Se é que se podia chamar de habilidade. Nem sabia como chamar essa capacidade. Mas, mesmo sem saber como chamar, a verdade é que podia abstrair certas coisas. Fragmentos. Momentos. Partes do corpo.
Quanto estava entediado no trabalho, via o mundo com outros olhos. O discurso do seu chefe sobre as necessidades operacionais dos fragmentos institucionais acabava, invariávelmente, transformando-se em alguma música levemente melancólica. Ou não. Dependia do seu estado de espírito. Ou ainda, quando lhe interessava, podia abstrair as roupas. Podia ver todas as curvas de um corpo. Reentrancias. Cotovelos. Nucas. Polpas. Tudo.
Nas segundas-feiras, quando a humanidade lhe parecia uma grande piada, costumava abstrair-se de tudo o que se parecia com pessoas. No metrô, era gritante a quantidade de roupas que flutuavam, apressadas. Casacos coloridos dos adolescentes esfregavam-se em saias de colegiais, levemente enroladas nas cinturas invisíveis. Ternos nervosinhos folheavam jornais que depois eram largados sobre os bancos e esmagados por grossas calças de lã poídas. Um par de luvas esqueirava-se por um par de ombreiras fora de moda. Um mosaico de roupas e objetos movia-se. Com vontade própria.
Algumas terças eram de órgãos internos, intestinos e tripas. Uma visão meio incômoda. Bom... dependia-se do menú. Se bem que, perto do final da tarde, quase sempre a visão era mesma: aparelho digestivo pulsando. Sucos gástricos maltratando a parede do estômago. Músculos tesos. Irritação evidente.
Nos dias em que estava feliz, eram só sorrisos. Nos finais de semana, orgias líquidas. Às vezes, esperma. Quase sempre, cerveja. Jantares de vinho. Noitadas de uísque. Dias seguintes com muita água, sucos, outras cervejas.
Num final de ano, foi ao funeral de um amigo querido. A cerimônia foi cheia de lágrimas. Algumas abundantes, que escorriam com rapidez. Outras eram mais tímidas. Levavam certo tempo acumulando-se em um só ponto para depois lançar-se. Uma única lágrima continha toda a dor de uma perda. Uma lágrima só... que, quando prestou atenção, percebeu ser sua. Uma única lágrima que, aos poucos, foi sendo absorvida pela pele.
Seu único problema era que não conseguia controlar essas abstrações.
Atendendo à alguns clientes perdia-se pela quantidade de listras em suas camisas. Alguns objetos que lhe eram mostrados simplesmente se recusavam a ser vistos. Assim, dava opinião sobre coisas que não via. Algumas vezes não respondia às perguntas feitas... não porque não quissese, mas simplesmente porque não as tinha ouvido. Recusava-se a permanecer perto de algumas pessoas queridas, visto que elas eram músicas insuportáveis. Tristes demais. Animadas demais. Anos 50 demais.
Seu coração ansiava conhecer Bach. A chanson francesa. Uma mulher de fragrância amadeirada. Um garoto de bolas de gude. Vermelhos vivos. Azuis do céu só encontrados no sul do seu país. Um inventário de elementos dispersos e desconexos. Um caleidoscópio de pele.
Até que um dia, caminhando por uma rua qualquer, encontrou um guarda-chuva vermelho. Perfeito. Um guarda-chuva vermelho que tinha a voz de uma música perfeita. Romântica sem ser piegas. Doce, sem ser enjoativa. Um guarda-chuva com cheiro amadeirado. Com orgãos internos pulsantes e pressão sanguínea adequada. Um cérebro bem irrigado. Fígados e pulmões limpos... sem vícios.
Tudo estava na mais perfeita ordem, mas... onde estava o rosto? Quem era essa pessoa? Como poderia reconhecê-la mais tarde? Aos poucos percebeu que ela se afastava. Certamente iria para algum lugar que ele não sabia qual era. Pensou em chamá-la, mas não sabia como. Estava tão entretido sentindo-a que não conseguiu decifrar seu nome.
Enfim, ela se foi.
Ele, ficou.
Hoje anda por aí, tentando reconhecer os sinais.
*(humildemente inspirado em Posibilidades de La Abstracion de Julio Cortázar)
Max,
toda situação, seja ela qual for depende da realidade de cada um. As realidades são variadas e indicam o estado de quem a possui. Em seu texto, as metáforas inspiradas nos sentidos, denotam uma rica sensibilidade de uma realidade.
Parabéns pela criatividade
abraços
Surrealismo raro nas letras de hoje. Mesmo inspirado em Cortázar, não perde sua instigante originalidade. Muito bom!
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 15/8/2008 17:47
Inicio sua votação com carinho!
beijo no coração!
Bom demais, Max! A inspiração óbvia não tira o gosto de sua escrita.
abraços!
Max,
O que seria concreto para o personagem perdido em tantas abstrações?
belo conto!
bjssss
Muito bom seu conto
de leitura e entendiemnto fãcil
Publicadoooooooo
Obrigado pelos comentários!
Doroni:
Boa pergunta... acho que nem ele/eu poderia te dizer ao certo.. de qualquer forma "apareceu" uma ausência... a necessidade de algo concreto dentro de tantas abstrações!
Li de novo, e de novo! Texto bom ,surrealista,macabro, angustiante, amei!!!!!! Tem mais no gênero?
BJs
ND
O legal de ler textos bem escritos,é que a gente aprende a escrver.
camuccelli · Rio de Janeiro, RJ 12/9/2008 14:02Parabéns pelo texto. Muito interessante... Convido vc a visitar m/ novo trabalho, em exibição no Overmundo. Chama-se "Meu Anjo da Guarda!, e, ficou bem bonito..Apareça p/ conhecer...Abraços. Langinha..
Langinha · São Paulo, SP 3/10/2008 23:31Gostei. Também tenho algo inspirado no Cortázar. Mas, quem não tem?
Circus do Suannes · São Paulo, SP 10/11/2008 22:50
Achei lindo, me reconheci várias vezes...
Venha conhecer dona Verbena, ela ainda aguarda um pouco de atenção...http://www.overmundo.com.br/banco/verbena-preocupacao-em-pessoa
R. Rimet
Max,
Adorei o seu texto, a dádiva dele também e a desgraça...
Intrigate e belo...
:)
lindo e criativo texto... por minuto quis ter tal habilidade, mas só por um minuto.
:)
De novo, relendo, uma loucura isso.
abraços
Neusa
Max
Seu texto é envolvente, sensível, rico no vocabulário e principalmente nos detalhes durante o desenvolvimento. Adorei seu estilo. Sucesso!
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