Há poucos sons tão bonitos quanto o de uma orquestra afinando. É assim: o oboé lança o lá para o spalla, que o passa para os primeiros violinos e de lá para todo o resto. É essa primeira nota que engatilha todas as outras, saÃdas num arroubo harmônico, uma bagunça que por capricho da natureza é lindamente arranjada. São quartas e quintas justas que se combinam por causa da série harmônica, alinham-se porque assim o são, sem espaço para o palpite das pessoas. A afinação faz um concerto à parte, antes do concerto planejado, este pensado, medido e cheio de estética, aquele um som da natureza. Após uma dezena de segundos, a tocata espontânea, amálgama de quartas e quintas, some como apareceu, com a deixa para o compositor. Do lá para a orquestra, da nota pura e natural para a sinfonia. Agora, o homem pode meter o bedelho.
Sofia é oboÃsta, um instrumento pouquÃssimo lembrado pelos leigos. Senta-se quase no meio da orquestra quando está em arranjo clássico ou do romantismo, logo à frente dos fagotes e atrás das violas. Seu instrumento é como os dos outros oboÃstas, um ébano muito bem talhado, rococó, torneado como a perna de uma cadeira LuÃs XIV. As chaves prateadas ornam-no com uma mecânica secular, ininteligÃvel para os não-oboÃstas, desafio para todas as horas de estudo. O tubo do oboé começa com uma palheta dupla de bambu, encordoada na ponta de um tubinho de metal que se encaixa no topo do instrumento. Sempre que não está tocando, Sofia saca a palheta do instrumento e a esconde no canto da boca, molhando com saliva para que não resseque, ou escolhe uma alternativa menos asquerosa e coloca-a num potinho com água preparado especialmente para esse fim.
Quando o maestro chega para pedir a afinação a Sofia, ela já está sentada com o oboé montado e afinado. Quem dá o lá para o oboé para ele passar ao spalla e de lá para a orquestra é um diapasão eletrônico, também de Sofia, carregado no bolso do estojo do instrumento. Ela está em seu lugar conversando com o flautista ao seu lado quando o maestro já deu bom-dia e bate impacientemente com a batuta em sua estante pedindo silêncio. Depois aponta para a oboÃsta, que dá a nota, o spalla a colhe. Sofia ajuda na árdua tarefa de afinar as quatro flautas e o flautim ao seu lado, e então tira o instrumento da boca, deita-o no colo e espera. Essa espera, pensa Sofia, é a mais calma de todas.
Nos ensaios, a orquestra leva dez vezes mais tempo para afinar do que nas apresentações, porque nelas os instrumentos já estão prontos antes de entrarem no palco e faz-se aquela afinação ao público apenas para conferir as notas e dar um ar solene e erudito ao concerto. Sofia aproveita esse tempo a mais depois para ouvir a afinação dos outros. Não pensa na vida, não filosofa, apenas ouve com o oboé ao colo aquele som natural como o de uma queda d'água. Ela, instrumentista erudita que gosta de samba e dias de sol e que passa várias horas do seu dia no palco do teatro, ensaiando concertos antigos e de lugares onde não há samba nem dias de sol, só ouve. Sente aquele leve arrepio de quem gosta muito de algo sem mesmo perceber que está gostando. As dezenas de segundos que leva a afinação não são contadas.
A sinfonia da natureza cessa, o maestro bate novamente com a batuta. Manda abrirem na Pastoral, segundo movimento. Sofia ajeita-se na cadeira, arruma a partitura e espera novamente, porque esta música depois da afinação é medida: até começar a tocar, a oboÃsta tem de contar alguns compassos de pausa.
Sempre achei fantastico ficar vendo orquestra afinando...
* e gostei do destaque para o oboé...
A orquestra, e principalmente o ensaio de orquestra (lembra aquele filme do Fellini?) é pra mim algo com muito significado. Pretendo escrever mais sobre esse tema, mesmo implicitamente.
Obrigado pelo comentário! Abraços!
Gostei... me deu a sensação de entrar num mundo secreto do qual eu nunca fiz parte...dos bastidores da música... e me deu a sensação de perder o melhor do espetáculo, o que não faz parte dele...
Abraços!
Belo, belo, belo.
Saudade disso tudo.
És de BrasÃlia, ahn? Bem vindo.
Mantenhamos contato.
Abraço.
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texto massa, sensibilidade grande a sua!
fernandamonteiroc · Salvador, BA 6/8/2007 22:05Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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