Aquiles, a mulher e os sapatos

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Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ
10/9/2008 · 105 · 12
 

Adalgisa é uma mulher moderna. Ela trabalha como secretária executiva em uma multinacional com sede no centro de negócios do país. Por conta do seu ofício, lê os principais jornais de cabo a rabo antes das 7:30 da manhã . É uma mulher que sabe de tudo o que acontece. Tem opinião formada sobre diversos assuntos, inclusive política internacional. Mas não há quem a possa convencer de que Imelda Marcos exagerava na quantidade de sapatos. Adalgisa ama sapatos. Assim como qualquer outra mulher ama, um pouco mais ou um pouco menos.
Se o leitor já reparou como as mulheres se comportam em uma loja de sapatos, sabe do que eu estou falando . Sabe o leitor atento que o comportamento de Adalgisa é, se não aceitável, ao menos comum. Adalgisa, que trabalha na torre de um shopping, na hora do almoço costuma correr para as lojas a procura de novidades.
Antigamente, sapato era tudo igual, mudando, no máximo a cor. Hoje em dia, como quase tudo está ‘na moda', existem nas lojas todos os tipos de sapatos. Saltos agulha, quadrado, baixo, rasteiro. Bico pontudo, daqueles que não se entende como pode ali caber o pé. Bico redondo, frente aberta, lateral fechada. Couro sintético, napa, crocodilo. Tudo, para qualquer ocasião. E Adalgisa fica louca.
Uma certa manhã, quando corria para o elevador que a levaria a sua sala, a mulher com fraco para sapatos viu um modelo irresistível. Era um daqueles que lembram a década de 40. Salto sete, lilás, fechado atrás e com bico arredondado e um laço preto absolutamente incrível, segundo julgou. Como a fila para o elevador estava imensa, correu até a loja e perguntou se tinha número 37. E tinha. A vendedora, porém, alertou que era preciso experimentar, que eram feitos artesanalmente, que poderia haver diferença.
Não havia tempo para experimentar nada, a fila do elevador andara e precisava correr, prometendo voltar na hora do almoço, tinha uma manhã inteira de trabalho duro pela frente. Trabalhou assim, duro, a manhã inteira. Duro e mal, pois só pensava nos sapatos. Só lá pelas dez horas, lembrou que era secretária e as secretárias sempre dão um jeito nas coisas. Demorou a perceber isso porque as secretárias são treinadas para sempre dar um jeito nas coisas dos outros. Quando se trata das suas coisas, às vezes não dão.
Chamou uma auxiliar e pediu para ir até a loja de sapatos e reservar dois pares daquele modelo que virara objeto de seu desejo. Um par 37 e outro 38, na cor lilás. Quinze minutos depois a moça voltou dizendo que aquela loja não fazia reservas e que o número 38 já havia sido vendido. Pânico. Adalgisa, sempre calma e controlada por conta do zelo na profissão, tremeu toda. Não poderia ficar sem aqueles sapatos. E não poderia sair do seu posto, pois tinha dúzias de reuniões para agendar até o meio dia.
Resolveu telefonar para a loja e chamou a gerente. Soltou os bichos, disse que era muito ocupada e que gostaria que mandassem o par para experimentar. A gerente calmamente explicou que entendia que fosse ocupada, mas era norma da casa não fazer reservas ou enviar pares para clientes não cadastradas.
O jeito seria, então, aguardar a hora e meia que faltava e descer para buscar o par de sapatos que tanto desejava. Quando finalmente terminou o último telefonema pedido pelo chefe, Adalgisa olhou o relógio e pôde ver que já eram 12:45h.
Correu para o elevador e ao sair, como uma doida, foi direto para vitrine. E lá estavam eles, lindos e maravilhosos, esperando pelos seus pés. Entrou calma e triunfante na loja. Ao ouvir da vendedora o mantra " Em que posso ajudar?" disparou:
__Aquele par lilás ali, 37, por favor.
__Sinto muito, acabei de vender o último par. Não quer ver mais alguma coisa?
O " Acabei de vender o último par" veio como um murro nos dois ouvidos. A ficha demorou a cair.
__Não , eu quero aqueles ali, 37, por favor.
__Minha senhora, estou dizendo que acabei de vender o último par daquele modelo em lilás para aquela outra senhora de blusa verde que está no caixa.
Mecanicamente, Adalgisa olhou para trás e viu uma mulher loura, impecavelmente vestida com uma saia creme e blusa de seda verde recebendo o comprovante do cartão e a sacola com os sapatos, virando-se para sair satisfeita da loja. Tudo escureceu. Quando a loura passou pela vendedora, agradeceu e ia saindo, foi imobilizada por Adalgisa que a jogou no chão como fazem os jogadores de futebol americano quando um adversário pega a bola. A pobre mulher gritava por socorro sem entender o motivo de aquela doida estar em cima dela gritando "dá aqui que esse sapato é meu e eu vi primeiro" enquanto espumava.
A segurança do shopping foi rapidamente acionada. Só com a ajuda de quatro homens conseguiram tirá-la da loja. Adalgisa hoje se encontra em uma casa de saúde em terapia. Através de sessões diárias, busca abandonar sua compulsão. Lá, só se usam havaianas.

Sobre a obra

Não havia tempo para experimentar nada, a fila do elevador andara e precisava correr, prometendo voltar na hora do almoço, tinha uma manhã inteira de trabalho duro pela frente. Trabalhou assim, duro, a manhã inteira. Duro e mal, pois só pensava nos sapatos.

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Publicado em Fio de Ariadne
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Conto do cotidiano feminino
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Marcos Pontes
 

Viram, mulheres, o risco que correm ao alimentar esta compulsão? Muit bom, como sempre.

Marcos Pontes · Eunápolis, BA 7/9/2008 13:37
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Ecila Yleus
 

é ISSO CHEGAMOS A UM PONTO QUE O CONSUMISMO ROà O CÉREBRO.

Ecila Yleus · Recife, PE 7/9/2008 18:46
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Compulsão Diária
 

Ah, Vanessa. adorei. Sapatos são meu tendão de aquiles;))Aadorei seu texto. Senti falta dessa prosa bem escrita e divertida. beijo

Compulsão Diária · São Paulo, SP 8/9/2008 03:19
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Gustavo Adonias
 

Vanessa,

Muito bom o seu texto. Nossa sociedade leva-nos a criar uma verdadeira obsessão por determinados bens materiais, sem os quais não conseguimos nos imaginar. Isso, às vezes, beira as raias da loucura, e queremos porque queremos aquilo, e sem perceber agimos compulsivamente e até agressivamente, como foi o caso da sempre calma e controlada Adalgisa, que por um par de sapatos perdeu as estribeiras e foi parar em uma casa de saúde...

Parabéns ! Vo(l)tarei.

Bjs poéticos

Gustavo Adonias · Salvador, BA 9/9/2008 10:20
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Gustavo Adonias
 

Ops, já em votação. Abrindo a votação...

Gustavo Adonias · Salvador, BA 9/9/2008 10:21
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Marcos Pontes
 

Marcos Pontes · Eunápolis, BA 9/9/2008 11:07
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Fifo Ribeiro
 

ah, às vezes esqueço de vir aqui te votar

(hoje não esqueci!)

mas sou fã e leitor ativo do fio!!!

bjs!

Fifo Ribeiro · Porto Alegre, RS 9/9/2008 16:26
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clara arruda
 

Sem loucura rsrsr
Adorei Adalgiza e seu texto minha querida.

clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 9/9/2008 19:04
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Ailuj
 

Maravilhoso seu texto
Um beijo e publicado com louvor

Ailuj · Niterói, RJ 10/9/2008 08:51
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Vanessa Anacleto
 

Obrigada amigos votantes, eu tb adooooooooooro sapatos. Mas me seguro pra não dar uma de Adalgisa.

abraço

Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ 10/9/2008 11:06
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EdimoGinot
 

Eu compro um sapato chamado SAPATOTERAPIA.
Acho que não seria o caso da sua personagem...(rs)
Muito bom o texto
Um abraço

EdimoGinot · Curitiba, PR 10/9/2008 13:23
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Compulsão Diária
 

Compulsão Diária · São Paulo, SP 11/9/2008 05:45
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