Sempre disseram que ninguém é insubstituÃvel. Mas, como se substituir? Com o quê? Com quem? Como?
Quisera ter agora uma cadeira de balanço enquanto tecia confusamente lembranças e reflexões. Mas não a tinha. Sentava-se num velho estofado que parecia estar sempre molhado dado à umidade retida na sua longa existência.
Bem a sua frente, um banquinho para descansar os pés, de outra estampa, que em três fissuras laterais mostrava uma espuma verde, que por sua vez, debulhava-se no chão como se efervescente fosse.
Entre os seus braços, uma almofada preta com aplicações de crochê coloridas. Alguns pontos se desfazendo. Pontos desfeitos... Pontos desfeitos.
Estava frio naquela noite.
Pesava-lhe o silêncio. Tanto que se sentiu imobilizada. Por sorte, tinha ao alcance das mãos um cobertor de lã cinzento.
Por baixo dele, um a um acalentou: medo, solidão, frio, noite, silêncio. Por baixo do cinzento cobertor adormeceu.
Estava frio naquele dia.
Acordou-se cedo como de costume.
Pensou no banho. Pensamento que lhe antecipou um desconforto que logo foi eliminado pela desistência do mesmo. Mudar a roupa também não lhe pareceu agradável. Estava tão frio. Além do mais, não havia suado, e, mais que tudo, era-lhe penoso pensar no banho e na troca de roupas. Era como quebrar uma homeostase, retirar-lhe a proteção, expô-la.
Escovar os dentes também não. Tudo de fora parecia ameaçar-lhe. Por isso, tudo que estava fora trazia para dentro.
Levantou-se e pensou que era apenas o começo de mais um dia. Caminhou com dificuldade até a cozinha, que não era muito distante.
A dificuldade do seu caminhar eram as coisas que compunham as linhas vazias de sua existência. As mesmas coisas com as quais tentava preencher o espaço. Espaço vazio. O espaço oco. O espaço da ausência. O espaço do insubstituÃvel.
Pousou seu olhar fúnebre sobre a pia de lavar louças. Não as lavava há dias. Todos os dias planejava fazê-lo. Todos os dias desistia. E como esse era mais um dia entre todos os dias, desistiu.
Pesava-lhe um cansaço que não conseguia vencer. Pesava-lhe a sensação de inutilidade que nada conseguia remover.
Caminhou com dificuldade até o velho estofado. A dificuldade do seu caminhar eram as coisas. As coisas abandonadas, inúteis, velhas: lixo. As coisas que para ela não eram lixo.
Sentou-se e teve o conforto de sentir ainda no velho estofado, o seu próprio calor. Era o único calor de substância viva que tinha. O seu mesmo calor. Sempre retornava ao estofado depois de levantar-se para senti-lo. Eram segundos de conforto. Por vezes, embalada por ele, novamente adormecia. E adormeceu.
Mais uma vez acordara. Agora sim, precisava continuar. Abriu a porta. Fechou a porta. Seguiu.
Olhares também pareciam segui-la. Cochichos também pareciam segui-la. Talvez ameaças, talvez insultos; vozes. Não se importava.
Caminhava seguida por horas seguidas.
...
(Continua, baixe o arquivo)
"Por baixo dele, um a um acalentou: medo, solidão, frio, noite, silêncio."
você se superou nessa descrição, vitória.
parabéns, belo texto.
abração,
Muito obrigada Marcos!!
abração também para você!!
GUARDAR
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
Admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigÃlia por
Ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
Isto é , estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
Por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
(Antonio CÃcero)
Vick. Lindo texto. Escrevi no meu blog sobre uma mulher que guardava coisa. na época vc me disse que estava escrevendo um conto sobre o tema. As coincidências de quem vive em sintonia e parceria constante. Reli o texto ("O que se guarda" - no histórico, de 27/08 a 02/09: www.barbosarenan.blog.uol.com.br) e vi que um complementa o outro. Vc responde, com sua história de ficção, as indagações que me ocorreram a partir de um caso real. E sempre com crueza, talento, revolvendo a alma do leitor. Que privivlégio ter uma irmã como você!
Privilégio é o meu!!
muito feliz sempre com o seu amor!
Obrigada!
Oi, Vitória!
Inauguro hoje minha participação aqui no site te parabenizando por mais este texto, que, dentre outros aspectos, nos faz refletir sobre a atenção social e familiar (ainda pouca pra dizer o mÃnimo) ao idoso, e a solidão que geralmente os cerca.
Fico por aqui e espero por estes dias também participar um pouco desta vivência cultural, pois esta troca de idéias é o que nos socorre...
Ah! também sou paraibana (JP) e và que há boas contribuições da terrinha por aqui. Vamos mantê-las.
Abços.
Mônica Santos.
Então seja muito bem vinda! gostei muito do seu comentário!
abração!
Olha, muito bom mesmo, apesar de extremamente melancólico, texto factÃvel e verdadeiro associações e imagens. Parabéns.
Camafunga · Pelotas, RS 19/2/2007 11:32Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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