Ausência Perpétua (conto)

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Vitória Maria · Suíça , WW
11/2/2007 · 87 · 7
 


Sempre disseram que ninguém é insubstituível. Mas, como se substituir? Com o quê? Com quem? Como?
Quisera ter agora uma cadeira de balanço enquanto tecia confusamente lembranças e reflexões. Mas não a tinha. Sentava-se num velho estofado que parecia estar sempre molhado dado à umidade retida na sua longa existência.
Bem a sua frente, um banquinho para descansar os pés, de outra estampa, que em três fissuras laterais mostrava uma espuma verde, que por sua vez, debulhava-se no chão como se efervescente fosse.
Entre os seus braços, uma almofada preta com aplicações de crochê coloridas. Alguns pontos se desfazendo. Pontos desfeitos... Pontos desfeitos.
Estava frio naquela noite.
Pesava-lhe o silêncio. Tanto que se sentiu imobilizada. Por sorte, tinha ao alcance das mãos um cobertor de lã cinzento.
Por baixo dele, um a um acalentou: medo, solidão, frio, noite, silêncio. Por baixo do cinzento cobertor adormeceu.
Estava frio naquele dia.
Acordou-se cedo como de costume.
Pensou no banho. Pensamento que lhe antecipou um desconforto que logo foi eliminado pela desistência do mesmo. Mudar a roupa também não lhe pareceu agradável. Estava tão frio. Além do mais, não havia suado, e, mais que tudo, era-lhe penoso pensar no banho e na troca de roupas. Era como quebrar uma homeostase, retirar-lhe a proteção, expô-la.
Escovar os dentes também não. Tudo de fora parecia ameaçar-lhe. Por isso, tudo que estava fora trazia para dentro.
Levantou-se e pensou que era apenas o começo de mais um dia. Caminhou com dificuldade até a cozinha, que não era muito distante.
A dificuldade do seu caminhar eram as coisas que compunham as linhas vazias de sua existência. As mesmas coisas com as quais tentava preencher o espaço. Espaço vazio. O espaço oco. O espaço da ausência. O espaço do insubstituível.
Pousou seu olhar fúnebre sobre a pia de lavar louças. Não as lavava há dias. Todos os dias planejava fazê-lo. Todos os dias desistia. E como esse era mais um dia entre todos os dias, desistiu.
Pesava-lhe um cansaço que não conseguia vencer. Pesava-lhe a sensação de inutilidade que nada conseguia remover.
Caminhou com dificuldade até o velho estofado. A dificuldade do seu caminhar eram as coisas. As coisas abandonadas, inúteis, velhas: lixo. As coisas que para ela não eram lixo.
Sentou-se e teve o conforto de sentir ainda no velho estofado, o seu próprio calor. Era o único calor de substância viva que tinha. O seu mesmo calor. Sempre retornava ao estofado depois de levantar-se para senti-lo. Eram segundos de conforto. Por vezes, embalada por ele, novamente adormecia. E adormeceu.
Mais uma vez acordara. Agora sim, precisava continuar. Abriu a porta. Fechou a porta. Seguiu.
Olhares também pareciam segui-la. Cochichos também pareciam segui-la. Talvez ameaças, talvez insultos; vozes. Não se importava.
Caminhava seguida por horas seguidas.
...
(Continua, baixe o arquivo)

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informações

Autoria
Vitória Maria Barbosa
Ficha técnica
Há algo de imagético nas minhas composições. Imagens, experiências vividas, experências observadas, experências imaginadas. Juntam-se. Este conto foi inspirado em um fato real, uma notícia que vi na TV, no Fantástico mais precisamente. Recentemente vi algo também parecido. Ambos em São Paulo.
Sei que me tocou. Intensamente.
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Marcos André Carvalho Lins
 

"Por baixo dele, um a um acalentou: medo, solidão, frio, noite, silêncio."
você se superou nessa descrição, vitória.
parabéns, belo texto.
abração,

Marcos André Carvalho Lins · Recife, PE 10/2/2007 21:52
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
Vitória Maria
 

Muito obrigada Marcos!!
abração também para você!!

Vitória Maria · Suíça , WW 11/2/2007 12:12
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Renan Barbosa
 

GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

Admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por

Ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,

Isto é , estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro

Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,

Por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

(Antonio Cícero)
Vick. Lindo texto. Escrevi no meu blog sobre uma mulher que guardava coisa. na época vc me disse que estava escrevendo um conto sobre o tema. As coincidências de quem vive em sintonia e parceria constante. Reli o texto ("O que se guarda" - no histórico, de 27/08 a 02/09: www.barbosarenan.blog.uol.com.br) e vi que um complementa o outro. Vc responde, com sua história de ficção, as indagações que me ocorreram a partir de um caso real. E sempre com crueza, talento, revolvendo a alma do leitor. Que privivlégio ter uma irmã como você!



Renan Barbosa · São Paulo, SP 11/2/2007 18:51
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Vitória Maria
 

Privilégio é o meu!!
muito feliz sempre com o seu amor!
Obrigada!

Vitória Maria · Suíça , WW 11/2/2007 22:37
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Monica Santos
 

Oi, Vitória!
Inauguro hoje minha participação aqui no site te parabenizando por mais este texto, que, dentre outros aspectos, nos faz refletir sobre a atenção social e familiar (ainda pouca pra dizer o mínimo) ao idoso, e a solidão que geralmente os cerca.
Fico por aqui e espero por estes dias também participar um pouco desta vivência cultural, pois esta troca de idéias é o que nos socorre...
Ah! também sou paraibana (JP) e ví que há boas contribuições da terrinha por aqui. Vamos mantê-las.
Abços.
Mônica Santos.

Monica Santos · João Pessoa, PB 13/2/2007 16:55
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Vitória Maria
 

Então seja muito bem vinda! gostei muito do seu comentário!
abração!

Vitória Maria · Suíça , WW 13/2/2007 22:30
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Camafunga
 

Olha, muito bom mesmo, apesar de extremamente melancólico, texto factível e verdadeiro associações e imagens. Parabéns.

Camafunga · Pelotas, RS 19/2/2007 11:32
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