Por volta das 17h30 de uma tarde de setembro, sob o entardecer tardio do Corcovado, ele esgueirou-se em silêncio pelas escadarias do Cristo, como um puma no crepúsculo. As primeiras luzes da cidade imprimiam em suas retinas felinas o silêncio pânico da noite. Centenas de turistas de mundos que nunca vira passavam indiferentes, numa babel de falas e falácias, de cheiros e cores. Mimetizado na paisagem, sentia-se invisÃvel. Não tinha idade, famÃlia, nome ou sobrenome. Não tinha amores ou sonhos. Não tinha nada que se lhe lembrasse humano. No máximo, um leve gosto de saudade – e o medo que escorria dos dedos crispados na arma oculta, seu único documento.
O olhar baço do Cristo de concreto fitava os morros de cujos barracos rolavam restos de rezas, risos e ritos. Imaginou-se em algum lugar fora do tempo e do espaço em que nascera, onde pudesse ter amado alguém que ele sabia nunca amaria, fosse pai, mãe ou a Maria. Afagou a arma fria na noite idem como se faz com quem se ama. Sentiu a carne metálica da semi-automática 8 mm tremendo de suor em suas mãos. O coração acelerou como na primeira vez. A boca seca, a sensação de medo, o silêncio, o tesão, o calor antecederam a ordem rude: “Perdeu!â€
O homem abriu os grandes olhos azuis e a mulher gritou na noite escura: “My God!†O gringo, assustado, resguardou a esposa instintivamente com o corpo e articulou sons ininteligÃveis. As palavras lhe saÃam da boca e ricocheteavam sem sentido na arma trêmula, eivadas de pavor. Tudo muito rápido. Um estampido. Um grito. E o corpanzil estatelou-se nos degraus da escadaria, colorindo-a de vermelho. A mulher começou a gritar histérica: “Help me! Help me!â€
— Cala a boca, vagabunda! – disse ele, mais apavorado que a mulher – passa a grana! Dólar, dólar, dólar, repetia à exaustão, como se inconscientemente buscasse no vocábulo um vÃnculo, um sentido, uma ponte entre sua vida e a daquela mulher.
O barulho súbito de sirene se espalhou na noite. Vozes, gritos, gemidos, sangue, suor e medo se misturavam. Ele viu a mulher abraçada ao corpo inerte do companheiro. As pessoas apontando-o. E a noite, há segundos cúmplice natural, acendendo a lua em sua pele negra, desnudando-a. Os meganhas chegavam de todos os lados, armas em punho e as narinas arfando como cães de caça. O cheiro de pólvora ainda exalava do corpo morto sobre a poça de sangue. Os PMs tomaram posição atrás das viaturas, na beirada da noite, no parapeito do medo. Contou mais de dez, mediu as possibilidades e brandiu a arma:
— Filhos da puta!
Encurralado, não lhe restou alternativa. Olhou a mulher com o corpo do homem no colo, como uma santa em prantos, e correu escadaria acima abrindo passagem entre os turistas assustados. “Tudo erradoâ€, pensou, ouvindo os cachorros da polÃcia atrás. Ãgil, subiu no parapeito do Redentor, olhou a cidade linda, maravilhosa. Fez o sinal da cruz e pulou sob uma rajada de balas. O Cristo por testemunha. Voou como nunca pensou. Lindo, livre, leve, por sobre os edifÃcios, matos, morros e barracos. O mar, a lembrança dos olhos do gringo, o céu escuro sobre a baÃa de Guanabara repleta de luzes, tudo lhe remetia à cor primordial do seu berço no Muquiço: azul-celeste.
Flutuava como nunca. Olhava tudo de ângulos e dimensões nunca imaginados. Mirando as águas escuras da baÃa, não sabe por que a palavra Mputu lhe sobreveio. Talvez uma memória atávica. Porque nunca soubera ou saberia que Mputu é a terra dos mortos, para onde iam seus ancestrais na velha Ãfrica. Mas nada lhe importava agora. Todos os seus sentidos convergiam para a brisa que lhe acariciava a face. Olhou para baixo e murmurou entre as nuvens:
— Como é lindo o Rio...
E, antes de desaparecer no infinito, ainda voltou os olhos para a multidão que apontava morro abaixo o pequeno corpo inerte.
Nivaldo!
Realismo fantástico puro.Maravilhoso!
Fiquei arrepiado. Vc. usa muito bem o fantástico para contar a realidade cotidiana... Eu não faria melhor.
Saudações pantaneiras
olha que o Arlindo é fera!!! Nivaldo também achei maravilhoso o conto, muito bom mesmo!! acabei de ler e comentar outro conto ,
você talvez goste dele, também tá em votação...chama-se Dama de ouro. são estilos semelhantes!!parabéns!!
abs.
Salve, Rio de Janeiro!!
Salve, Nivaldo!!!
Seja Bem Vindo!!
Diante dos comentários anteriores me restaram as palmas:
clap clap clap clap clap clap!!!!!
Parabéns!!
Marcos e Rangel,
obrigado pelos comentário e palmas. Vindos de terras tão pródigas em talentos como MS e MG (Salve, Manoel de Barros; salve, Guimarães Rosa, para citar apenas dois que amo), é realmente gratificante. Vou fazer uma visita à Dama de Ouro, sim, Marcos. Abração nos dois.
Marcos de PE,
desculpe-me a confusão das terras. Talvez o sertão tão presente em Minas como em PE tenha me lavado inconscientemente ao erro. Mas não seja por isso, salve também João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Osman Lins, Suassuna e todos os cordelistas de Caruaru a Recife! Um abraço.
Gratificante saber que você aà do Rio de Janeiro aprecie nosso Poeta Maior - Manoel de Barros. Sou fã desse desconstrutor de palavras..
Fiz uma singela homenagem a ele num texto meu, dê uma olhada:
http://www.overmundo.com.br/banco/manoel-de-poesias-pra-dizer-de-verso-e-de-poeta-amem
Ah, a experiência! "Fez o sinal da cruz e pulou sob uma rajada de balas. O Cristo por testemunha. Voou como nunca pensou. Lindo, livre, leve, por sobre os edifÃcios, matos, morros e barracos", eu gostaria de ter escrito isso!
Manda mais contos fantásticos e obrigado pelas observações!
Nivaldo está de parabéns...
A realidade nua e crua, que encurrala o povo,
e o nosso turismo para longe do Cristo, ainda que sedo de pedra
está de braços abertos para todos.
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