Bem-nascido

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Wuldson Marcelo · Cuiabá, MT
18/4/2011 · 8 · 17
 

Amostra do texto

A espada que atravessou o seu coração denunciou o punhal que havia traído suas convicções. Para ele não existia alternativa. Somente o fim planejado pelo seu “Paiâ€. O sacrifício era o seu destino. Um sacrifício que salvaria às vidas que habitavam o seu prado. Ele cresceu sabendo que a fuga era impossível. Sua mãe sofria por ele. Mãe solteira que nunca relatou algo misterioso em seu nascimento. Não há indícios que desejou escapar daquilo, alegava terem traçado para ele. Apesar de alguns boatos, de quem leu as expressões de seu rosto atentamente, de que ele amou uma mulher, e que tal condição de apaixonado, poderia por em risco os objetivos de seu “Paiâ€. O que complicava ainda mais a situação, segundo a população, era o fato da moça não ter nada de virtuoso. A jovem ganhava a vida como garota de programa.
Sempre bom e justo, enfrentou a miséria, a desesperança, a desconfiança dos outros. Até ameaças de morte vindas de paramilitares, grupos neonazistas e fanáticos religiosos. O olhar lançado com semblante interrogativo, para o rapaz, era devolvido com ternura. Ele não era nobre de nascimento, somente de alma. Uma alma de bravo. Ele deveria fazer as pessoas enxergarem seus erros, fazê-las esquecerem seus temores e aspirarem à liberdade. Ele dizia que tal liberdade que desejava para o povo só seria possível com o seu “Paiâ€. Uma junta de psiquiatras intitulada “Saúde Mental em Nome do Estado e da Família†o declarou insano e cogitou a sua internação em um manicômio.
Adulto, e pronto para a sua missão, partiu em peregrinação. Por alguns foi adotado, enaltecido, seguido, por outros tantos foi hostilizado, repudiado, pedido sua morte. O Governo começou a estudar a possibilidade de considerá-lo persona non grata ou sequestrá-lo e dar cabo dele em qualquer terreno baldio. Ele transitava de um lado para outro e começava a formar aglomerações ao seu redor. Isso não é nada bom para o tipo de regime político do país. Ele virou “Aquele homemâ€, mescla de desprezo e medo.
Ele era aquele que foi engendrado para espalhar o bem. Sócrates, Buda, Jesus, Che Guevara, séculos depois destes, transitando pelo caos, disseminando ideais arcaicos. Era essa uma acusação que os donos do poder fizeram questão de alardear.
Condenado à revelia por crimes contra o estado e desrespeito à religião oficial, foi caçado até ser capturado e levado ao calabouço. Uma mulher, conta-se uma dançarina famosa na época, pediu sua cabeça numa bandeja de ouro. O presidente negou a solicitação por considerá-la demasiada primitiva e irracional.
Torturaram-no com exímia crueldade e destreza. Seus seguidores tidos como insurgentes foram fuzilados. Ninguém o renegou ou traiu. Ele foi encontrado porque nunca se escondeu e, além disso, o governo possuía uma excepcional Agência de Inteligência. Execução sumária para todos que contestassem as determinações estatais. Finalmente um decreto tornava o “bem-nascido†um desterrado. Exílio político. Depois converteram essa sentença em pena de morte. Ele seria morto em praça pública. O suplício da roda deveria obrigá-lo a se retratar das injúrias contra o Estado e a religião oficial. Ele não o fez na esperança que o seu “Pai†o salvasse. Porém, o seu genitor não apareceu. No momento derradeiro, ele percebeu o abandono: os ossos quebraram-se e os órgãos se arrebentaram como se animais ferozes o dilacerassem. Ele não viu nada além do terror. O terror que emitem aqueles que cometem o erro da devoção cega. O juiz que proferiu a sentença se orgulhou do eficiente recurso àquele expediente de execução, “Riram de mim, dizendo para que trazer de volta instrumento tão defasado, coisa do século XVIIIâ€.
A vida já havia se esvaído do corpo do “bem-nascidoâ€, quando o carrasco, sem mais nem menos, espetou o coração do nobre rapaz. Morreu sozinho. Para muitos foi um lunático, bem intencionado, que quisera libertar seu povo do jugo de um Governo totalitário, abraçando a equivocada ideia de acreditar, e esse assumir, como um Messias. A mãe, a garota de programa e algumas tias e primas, e poucos fiéis, recolheram o corpo e prepararam-no para o sepultamento. Os amigos não compareceram. Os que não estavam mortos foram viver na clandestinidade. No terceiro dia de sua morte, o “bem-nascido†não ressuscitou. O Governo decretou feriado no dia seguinte, uma segunda-feira cinza. Motivo: o Estado fazia o seu povo feliz.
Megalópole, 01º de Abril de 3333.

Sobre a obra

No futuro a humanidade se depara com "a mais bela história do mundo". Mas não é aquela, só se parece com ela. O Salvador, seus discípulos e seguidores e os carrascos estão lá.

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informações

Autoria
Wuldson Marcelo é graduado em Filosofia pela UFMT, mestrando em Estudos de Cultura Contemporânea e contista. Autor do livro de contos Obscuro-shi (no prelo, editora A Fábrika: Santa Casa da Criação).
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DAI*
 

REALMENTE É UMA HISTORIA QUE SE PARECE COM AQUELA.. ADOREI ESSA OBRA!! ME DESPERTOU INTERESSE EM CONTINUAR LENDO E NÃO PARAR NO MEIO DO CAMINHO, OU MELHOR, DO TEXTO.... PARABENS! CONTINUE ASSIM! BJS.

DAI* · Recife, PE 18/4/2011 17:02
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- M.Leite
 

Estrutura e qualidade textual excelente.
No entanto, Jesus nosso SENHOR, foi citado como um homem, ele não foi só isso, e sim o salvador!

- M.Leite · Virgínia, MG 19/4/2011 09:40
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Doroni Hilgenberg
 

Isso acontece com os fanáticos, pois a fé em demasia também cega e mata, porque o pai não pode interceder aqui na terra. É território dos homens que estão se tornando maus e vingativos. bjs

Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 19/4/2011 15:26
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Wuldson Marcelo
 

M. Leite, o homem do conto não é Jesus. Ele, o homem do conto, é, realmente, humano. Mas Jesus, apesar de filho de Deus, teve a sua porção humana. Viveu, sofreu, se iludiu, sangrou como todos nós. Há naterra, homens dispostos, ou pensam que podem salvar a humanidade e governo totalitários e sanguinários o bastante, para executar pessoas que desejam praticar o bem. É sobre isso o conto.
Eu respeito a História de Jesus, por mais que não eu seja cristão, o suficiente para considerá-la a mais bela história do mundo.

Wuldson Marcelo · Cuiabá, MT 19/4/2011 17:46
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Selva Rodrigues
 

Pois é, graças a deus que o "Pai" não veio alterar o "bom" andamento dos procedimentos humanos, demasiadamente humanos para serem livres o sulficiente para repetir velhos padrões de da antiguidade barbara, com a diferença de que agora nos vem pela industria massificante dos meios midiaticos que servem ao capital.
Adorei o conto, e isso não cai para o religioso. Um abraço WULDSON

Selva Rodrigues · Cuiabá, MT 19/4/2011 19:51
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wender m. l. souza
 

Essa ideia de "salvação" feita por uma pessoa só, não é viável. A política deve ser feita pelo coletivo. Bela história.

wender m. l. souza · Cuiabá, MT 21/4/2011 10:54
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ayruman
 

O Divino Mestre Jesus é e sempre será a "Luz do Mundo".
Ele não veio salvar nós pobres mortais, mas sim mostrar o "Caminho da Salvação" que é individual. Cada ser humano façapor onde e construa a sua libertação guiado por esta Luz Universal.


Quando puder apareça. Ayruman agradece!!!

Uma boa Páscoa. Uma boa Semana.

ayruman · Cuiabá, MT 24/4/2011 11:13
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kfarias
 

Wuldson, como sempre ótimo post. Voce realmente cria em nossa mente um pensar de reflexão que nos leva a contestar ou a discutir o assunto em pauta.
Isso é bom, pois nos leva a imaginar como seria o mundo se a ficção torna-se realidade.
Parabéns.

kfarias · Ãguas de Lindóia, SP 24/4/2011 21:38
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Débora Maria Macedo
 

Uma boa história, tanto que desperta verossimilhanças (algumas até fundamentalistas). Uma narrativa que não permite que se tire os olhos da tela. Vou e volto, permaneço exilada deste espaçom mas sei que escritores como você garantem um retorno certo ainda que tardio. Maravilha de texto!

Débora Maria Macedo · São Paulo, SP 1/5/2011 09:12
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ayruman
 

Eu de novo aqui no seu santuário.
Tenha uma boa semana.

Se puder apareça. Sou grato.

ayruman · Cuiabá, MT 1/5/2011 21:44
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gteixeira
 

Wuldsom.
Prbns. Vc me parece ser joem, porisso o tema é extasiante, vivenciei os tempos da ditadura, sofri na pele, porisso me tocou. por hoje assista a novela do sbt, a qual eu não aguento assistir, pois me remonta ao acontecido desde 1964.
Prbns garoto.
Gteixeira

gteixeira · Salinas da Margarida, BA 6/5/2011 10:39
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gteixeira
 

Digo jovem. o que + importa é a sua bela maneira de retratar o tema.
Gteixeira

gteixeira · Salinas da Margarida, BA 6/5/2011 10:42
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Sihmoneh Maia
 

Achei uma tremenda viagem esse texto!
A troca de contexto fez toda a diferença e fez a história original soar simplesmente como um conto de fadas diante da "releitura" quase surrealista, não fossem os personagens figuras de uma sociedade realista.
Pirei.

Sihmoneh Maia · Santo André, SP 8/5/2011 11:10
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Débora Maria Macedo
 

Wuldson, um cola acima escreveu que vc parece ser jovem. Engraçado, sempre tive a impressão que era um coala atemporal

Débora Maria Macedo · São Paulo, SP 8/5/2011 20:00
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MartaLucena
 

Texto inteligente abriu para discussão, testa o nosso intelecto, o mundo necessita de paz, de coração limpo, de solidariedade, de amor e respeito. Ao homem o seu legado conforme sua caminha aqui na terra, e, que sua vida ou morte seja revertida sempre para o bem, ainda que seja em um verdadeiro 1º de abril. Parabéns. bjs

MartaLucena · Natal, RN 16/5/2011 23:53
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Selva Rodrigues
 

Ele, o Wuldson é um Coala atemporal, mas sempre se conserva jovem no seu proprio modo de sentir-se jovem, e pessoalmente continua sendo um ser notavelmente admiravel. Um abraço Wuldson! E vai que tenho coisas novas no Overmundo, e elas solicitam teu olhar. rsrs

Selva Rodrigues · Cuiabá, MT 24/5/2011 14:31
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Débora Maria Macedo
 

Digo "coala" não "cola". (trava-lingua)

Débora Maria Macedo · São Paulo, SP 26/5/2011 12:00
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