Ciranda

1
Luis Santana · Rio de Janeiro, RJ
5/4/2008 · 86 · 7
 

Amostra do texto

Cansada. Foi essa a palavra usada por Analu, para descrever seu momento.

Sem mágoas, mas com a maior das certezas, decidira que daquele dia em diante tudo teria que mudar.

Por muito tempo, havia amado muito àquele homem, a bem da verdade, seu único homem. Primeiro namorado que acabou por se instalar em sua vida como marido. Mas que sempre personificou a figura do amo e senhor.

Por fim, concluíra Analu, que jamais havia ele encarando o papel de companheiro.

Perdera a conta de quantas vezes, lhe fez e desfez as malas. Adepta do perdão e revestida da esperança de que um futuro acerto se concretizasse entre ambos, o recebia sempre de volta independente da falta de substância dos argumentos, que por ele eram apresentados.

Naquele domingo de virada de mês, acordou cedo – dormia na poltrona do quarto lendo a bíblia – e passou a correr os olhos por todo o cômodo, sem luxo, porém acolhedor, mas que naquela cena configurava-se imenso, tamanha solidão por ela sentida ao fixar com seus castanhos olhos – ávidos por vida – àquela cama mais uma vez vazia.

Já bastava, de tudo aquilo.

Olhos fechados, comprimidos com energia, fazendo lembrar uma fiel beata a rezar, Analu conteve o choro que por diversas vezes já havia sido inevitável.

Por três vezes dera a luz e sorrindo, sentira em si naquele instante, a sensação de primeiro contato com um ser que por ela fora gerado. A Aninha, sem vez e sem voz, passava a fazer parte do passado.

Não foi à missa costumeira, lavou e soltou os cabelos, trocou das unhas o tom claro que lhe acompanhara ou perseguira por toda a vida, pintou a boca – quase que sem prática - mas não ficou feio, escolheu um vestido de estampa que jamais pensou que um dia usaria e saiu sem deixar aviso.

Queria virar sua vida, como havia virado a página do calendário, que lhe lembrava dos compromissos junto ao fogão de quatro bocas.

Caminhou sem pressa, em direção as docas e tomou um barco em direção a Ilha do Frade.

Enquanto olhava as águas reluzindo com o sol da manhã, “mangava†de si mesma. Mas não duvidava de que estava sendo capaz de virar aquele jogo sórdido, do qual ela sempre foi a perdedora.

Havia desculpado as bebedeiras, feito vista grossa para amantes, sustentara a casa sozinha por bastante tempo e por pouquíssimas vezes ousara se queixar disso. Ele era ladino e sabia dos seus pontos fracos – família, filhos, religião, criação regrada – enfim, uma mulher lapidada para servir e obedecer.

Trinta e quatro anos. Não precisava de muitos cálculos para concluir ser possuidora de muita de muita vida pela frente, de muitas coisas a conhecer. O medo de ficar sozinha, de ser uma mulher falada; de ser encarada como a ovelha má da sua numerosa família. Por completo, esse medo não mais existia.

Recostada a uma das árvores do bosque que margeava o cais da ilha, a morena traçava seus planos e estudava seus próximos passos e procedimentos. A princípio não sentia o menor desejo de retornar àquela casa, da sua vida ali, só os filhos a interessava. Rondava-lhe o temor de que as crianças não a entendessem; como iriam aqueles meninos pensar sobre a sua atitude, era uma incógnita que lhe causava certo desconforto; não fugiria à verdade e os encararia, bem de frente. Se preciso fosse, esgotaria até o seu último argumento na tentativa de fazê-los ver qual seu ponto de vista e os por quês, da sua atitude.

Curioso, passar um dia de domingo sem a preocupação de preparar almoço. Melhor ainda, poder sentar-se ser servida; desde bem menina que não se sentia no foco das atenções.
Também percebera a diferença de ser olhada por noutros homens, não vinha ao caso quais eram as intenções e, se não era a Cinderela, a qual sonhara ser quando lia as fábulas infantis; por outro lado jamais permitiria que a fizessem novamente de gata borralheira, como havia sido por dezessete anos.

Viveu com tamanha intensidade aquele dia, que mal percebeu a chegada da noite que lhe trouxe uma imperativa verdade: ela não poderia viver sem um lar.

Analu retornou na última embarcação daquele domingo. Em casa todos a esperavam, exaustos pelas infrutíferas buscas por todos os cantos da cidade, quase não acreditaram ao vê-la retornar.
Confiante e determinada não se perdeu em explicações. Beijou e abraçou os filhos e com eles brincou de roda, fazendo com que o ar sombrio que pairava sobre todos os familiares se dissipasse. Em pouco tempo o quintal se transformou na mais autêntica e animada ciranda, onde, abraçados, todos dançaram até quase o amanhecer.
“ a dor veio bater em minha porta
deixei ela bem trancada
saí foi de mansinho no clarão da lavorada
o que eu fui procurar, sempre esteve em meu caminho
despertei, abri os olhos, pra poder sair do ninho
aprendi no bater das asas
que almas e sonhos não têm casas
e por isso, voa livre o passarinhoâ€

Com esses versos, o patriarca Tinoco abençoou a volta da filha, que ao contrário do que era por ela esperado, foi recebida e apoiada por todos, que a muito esperavam aquela decisão. Respeitaram e respeitariam qualquer decisão que ela tomasse, e melhor foi saber que, Analu acabara de se encontrar.

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Luís Santana
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Ailuj
 

Abrindo seus votos
Belo texto
Um beijo!

Ailuj · Niterói, RJ 3/4/2008 15:30
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Elio Cândido de Oliveira
 

BELO TEXTO.
http://www.overmundo.com.br/banco/matando-saudades
estou em votação
Visite-nos.

Elio Cândido de Oliveira · Ibiracatu, MG 4/4/2008 18:52
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anamineira
 

Luiz,
Um texto e tanto!
Votadíssimo.
Um abraço mineiro.

anamineira · Alvinópolis, MG 4/4/2008 20:42
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Falcão S.R
 

É um privilégio ler e poder votar nesse tão belo trabalho. Abraço

Falcão S.R · Rio de Janeiro, RJ 5/4/2008 03:38
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clara arruda
 

lendo e te mandando para a publicação.Um abraço.

clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 5/4/2008 03:44
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Roberto Girard
 

Luiz,
Ler seu texto é admirar a escrita bem cadenciada, entrelaçada em imagens de um filme que não finda, deixa rastros de seguimento, de continuidade...

destaco:

Queria virar sua vida, como havia virado a página do calendário, que lhe lembrava dos compromissos junto ao fogão de quatro bocas.

Caminhou sem pressa, em direção as docas e tomou um barco em direção a Ilha do Frade.

Enquanto olhava as águas reluzindo com o sol da manhã, “mangava†de si mesma. Mas não duvidava de que estava sendo capaz de virar aquele jogo sórdido, do qual ela sempre foi a perdedora.


Narrativa em perfeição de sentimentos arrolados no enredo, bravo!
Bravíssimo!

Votos com louvor e orgulho de proporcionar tão bela visão e esperanças.

Abraços,
Beto

Roberto Girard · Rio de Janeiro, RJ 6/4/2008 11:30
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Alice Poltronieri
 

Luiz, que texto maravilhoso! Por momentos pensei q estivesse assistindo a um capítulo de novela.
Votado com louvor.
Beijos.

Alice Poltronieri · Porto Velho, RO 7/4/2008 23:59
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