Cansada. Foi essa a palavra usada por Analu, para descrever seu momento.
Sem mágoas, mas com a maior das certezas, decidira que daquele dia em diante tudo teria que mudar.
Por muito tempo, havia amado muito àquele homem, a bem da verdade, seu único homem. Primeiro namorado que acabou por se instalar em sua vida como marido. Mas que sempre personificou a figura do amo e senhor.
Por fim, concluÃra Analu, que jamais havia ele encarando o papel de companheiro.
Perdera a conta de quantas vezes, lhe fez e desfez as malas. Adepta do perdão e revestida da esperança de que um futuro acerto se concretizasse entre ambos, o recebia sempre de volta independente da falta de substância dos argumentos, que por ele eram apresentados.
Naquele domingo de virada de mês, acordou cedo – dormia na poltrona do quarto lendo a bÃblia – e passou a correr os olhos por todo o cômodo, sem luxo, porém acolhedor, mas que naquela cena configurava-se imenso, tamanha solidão por ela sentida ao fixar com seus castanhos olhos – ávidos por vida – à quela cama mais uma vez vazia.
Já bastava, de tudo aquilo.
Olhos fechados, comprimidos com energia, fazendo lembrar uma fiel beata a rezar, Analu conteve o choro que por diversas vezes já havia sido inevitável.
Por três vezes dera a luz e sorrindo, sentira em si naquele instante, a sensação de primeiro contato com um ser que por ela fora gerado. A Aninha, sem vez e sem voz, passava a fazer parte do passado.
Não foi à missa costumeira, lavou e soltou os cabelos, trocou das unhas o tom claro que lhe acompanhara ou perseguira por toda a vida, pintou a boca – quase que sem prática - mas não ficou feio, escolheu um vestido de estampa que jamais pensou que um dia usaria e saiu sem deixar aviso.
Queria virar sua vida, como havia virado a página do calendário, que lhe lembrava dos compromissos junto ao fogão de quatro bocas.
Caminhou sem pressa, em direção as docas e tomou um barco em direção a Ilha do Frade.
Enquanto olhava as águas reluzindo com o sol da manhã, “mangava†de si mesma. Mas não duvidava de que estava sendo capaz de virar aquele jogo sórdido, do qual ela sempre foi a perdedora.
Havia desculpado as bebedeiras, feito vista grossa para amantes, sustentara a casa sozinha por bastante tempo e por pouquÃssimas vezes ousara se queixar disso. Ele era ladino e sabia dos seus pontos fracos – famÃlia, filhos, religião, criação regrada – enfim, uma mulher lapidada para servir e obedecer.
Trinta e quatro anos. Não precisava de muitos cálculos para concluir ser possuidora de muita de muita vida pela frente, de muitas coisas a conhecer. O medo de ficar sozinha, de ser uma mulher falada; de ser encarada como a ovelha má da sua numerosa famÃlia. Por completo, esse medo não mais existia.
Recostada a uma das árvores do bosque que margeava o cais da ilha, a morena traçava seus planos e estudava seus próximos passos e procedimentos. A princÃpio não sentia o menor desejo de retornar à quela casa, da sua vida ali, só os filhos a interessava. Rondava-lhe o temor de que as crianças não a entendessem; como iriam aqueles meninos pensar sobre a sua atitude, era uma incógnita que lhe causava certo desconforto; não fugiria à verdade e os encararia, bem de frente. Se preciso fosse, esgotaria até o seu último argumento na tentativa de fazê-los ver qual seu ponto de vista e os por quês, da sua atitude.
Curioso, passar um dia de domingo sem a preocupação de preparar almoço. Melhor ainda, poder sentar-se ser servida; desde bem menina que não se sentia no foco das atenções.
Também percebera a diferença de ser olhada por noutros homens, não vinha ao caso quais eram as intenções e, se não era a Cinderela, a qual sonhara ser quando lia as fábulas infantis; por outro lado jamais permitiria que a fizessem novamente de gata borralheira, como havia sido por dezessete anos.
Viveu com tamanha intensidade aquele dia, que mal percebeu a chegada da noite que lhe trouxe uma imperativa verdade: ela não poderia viver sem um lar.
Analu retornou na última embarcação daquele domingo. Em casa todos a esperavam, exaustos pelas infrutÃferas buscas por todos os cantos da cidade, quase não acreditaram ao vê-la retornar.
Confiante e determinada não se perdeu em explicações. Beijou e abraçou os filhos e com eles brincou de roda, fazendo com que o ar sombrio que pairava sobre todos os familiares se dissipasse. Em pouco tempo o quintal se transformou na mais autêntica e animada ciranda, onde, abraçados, todos dançaram até quase o amanhecer.
“ a dor veio bater em minha porta
deixei ela bem trancada
saà foi de mansinho no clarão da lavorada
o que eu fui procurar, sempre esteve em meu caminho
despertei, abri os olhos, pra poder sair do ninho
aprendi no bater das asas
que almas e sonhos não têm casas
e por isso, voa livre o passarinhoâ€
Com esses versos, o patriarca Tinoco abençoou a volta da filha, que ao contrário do que era por ela esperado, foi recebida e apoiada por todos, que a muito esperavam aquela decisão. Respeitaram e respeitariam qualquer decisão que ela tomasse, e melhor foi saber que, Analu acabara de se encontrar.
BELO TEXTO.
http://www.overmundo.com.br/banco/matando-saudades
estou em votação
Visite-nos.
Luiz,
Um texto e tanto!
VotadÃssimo.
Um abraço mineiro.
É um privilégio ler e poder votar nesse tão belo trabalho. Abraço
Falcão S.R · Rio de Janeiro, RJ 5/4/2008 03:38lendo e te mandando para a publicação.Um abraço.
clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 5/4/2008 03:44
Luiz,
Ler seu texto é admirar a escrita bem cadenciada, entrelaçada em imagens de um filme que não finda, deixa rastros de seguimento, de continuidade...
destaco:
Queria virar sua vida, como havia virado a página do calendário, que lhe lembrava dos compromissos junto ao fogão de quatro bocas.
Caminhou sem pressa, em direção as docas e tomou um barco em direção a Ilha do Frade.
Enquanto olhava as águas reluzindo com o sol da manhã, “mangava†de si mesma. Mas não duvidava de que estava sendo capaz de virar aquele jogo sórdido, do qual ela sempre foi a perdedora.
Narrativa em perfeição de sentimentos arrolados no enredo, bravo!
BravÃssimo!
Votos com louvor e orgulho de proporcionar tão bela visão e esperanças.
Abraços,
Beto
Luiz, que texto maravilhoso! Por momentos pensei q estivesse assistindo a um capÃtulo de novela.
Votado com louvor.
Beijos.
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