Ele amava a regularidade. E eu nunca fui capaz de entendê-lo. As palavras vão sair emocionais agora. Mas eu as quero tais como estou pensando, limpas. Quando sua mania de desenhar círculos concêntricos começou, fiz escárnio até doer. Só que ele era imperturbável e levou adiante seu projeto. Achava a cidade muito feia, muito irregular. E quando ele concluiu que círculos concêntricos são o que de mais regular existe, passou a desenhá-los no chão e nas paredes da cidade. Nada disso me teria tocado, e tampouco agora eu teria que abordar o assunto, não tivesse eu sido o único a conhecer o motivo real daqueles círculos. Ele me disse, mas pediu segredo, que os sete círculos traduziam visualmente o novo paradigma do mundo. Ele não se orgulhava de ter encontrado a equação visual do novo paradigma do mundo (sete círculos concêntricos com dois graus de abaulamento alternados nos eixos vertical e horizontal até o último, que é um círculo perfeito). Orgulhava-se, na verdade, de espalhar seu desenho insignificante pela cidade inteira. E como ninguém além de mim conhecia seu segredo, virei confidente. Fiquei sabendo – sempre nos mesmos dias – quando ele pintou os sete círculos no chão do Largo do Racionalista; quando ele pichou os pilares das Pontes Paralelas; soube de sua excursão à aldeia vizinha de Separação e Limites; contou de sua glória em esculpir os círculos na fachada norte da 1 Vertical Tower; afora empreitadas menores no Beco do Burocrata, no Arco 180, na vizinhança de Ponta Seca, na periferia de Traço. Em pouco tempo, minha rotina foi tomada por relatos da missão evangelizadora em que ele se meteu. Tanto me irritou, tanto me infernizou, que tomei uma atitude. Não me interessava matá-lo nem agredi-lo, apenas detê-lo, e então pensei que deveria aniquilar o sentido daqueles círculos concêntricos, fosse lá qual fosse. Dias depois, todos os conjuntos de sete círculos amanheceram marcados por um grosso quadrado, bem em cima, para deixar evidente a intenção de poluí-los, enfeiá-los, desdizer o que diziam. Ele me chamou para contar o que estava acontecendo. Nervoso, bebendo, disse que continuaria com mais força, agora que tinha um inimigo. Estimulei essa abnegação, pois queria que ele experimentasse o desgosto de ver os círculos estragados no dia seguinte. E assim foi, já que a cada dia de relatos, seguia-se uma noite de destruições. Adorei vê-lo em crise de nervos, tão capaz de inventar significados onde não há e tão incapaz de deduzir que somente eu poderia ser o inimigo oculto. Estava disposto a mais alguns dias de intrusão, até que o filósofo contemporâneo Uhrur Tcherenzi se apropriou do assunto como se tivesse descoberto a novidade dos tempos. “Examinando a disposição de sete círculos concêntricos empastelados por um agressivo quadrado em várias localidades deste município, descobri que alguém está formulando acertadamente o novo paradigma do mundo. A resolução visual da equação implica a busca do consenso impossível, a aceitação da necessidade do conflito como parte da saga por um balanço elementar. A luta está posta entre planos que se entrechocam, e é evidente que nenhum deve prevalecer, e sim tolerar a fusão com o outro, da qual não poderá fugir. O crescente dos círculos contrasta com a fixidez do quadrado, mas o contraste não nos é estranho, é familiar, até. Pode ser um signo do mundo em que a política tradicional está morta e relações unilaterais caminham para deterioração e expurgo. A tensão gerará a fusão para além dos limites e separações, acima de todo traço, sem qualquer burocracia racionalista, em que retas paralelas verticais não sejam as torres da verdade, mas arcos de regularidade relativa. Será o fim dos ângulos secos? Será o fim das pontas?” Com estas palavras pouco compreensíveis, Uhrur Tcherenzi trouxe o horror à vida de meu amigo, que viu na declaração uma afronta inaceitável. Um inapelável chamado à luta sem tréguas pela verdade dos sete círculos, ele me disse. Quem está rabiscando estes quadrados sobre os sete círculos é um profanador. Ou são vários profanadores. Precisam ser detidos! Sua ênfase, que ele não sabia ser contra mim, cresceu e eu senti medo. Mas em vez de me eleger como alvo prioritário, ele quis encontrar Uhrur Tcherenzi. Vou matar Tcherenzi, vou matar Tcherenzi quando encontrá-lo! Ele não pode dizer que os sete círculos precisam daquele quadrado, os círculos sozinhos são o novo paradigma do mundo! Saiu a buscar o filósofo contemporâneo, e parou de desenhar seus sete círculos concêntricos. Perguntei a ele se estava interessado em convencer o filósofo de sua idéia. Respondeu que isso não era possível, e que Uhrur Tcherenzi deveria morrer. Assustado, confiei que a possibilidade de que ele encontrasse o pensador fosse remota. Mas encontrou, depois de alguns dias vividos tão miseravelmente que seu rosto já não era o mesmo. Foi fácil para Tcherenzi sacar sua pistola – Uhrur tem porte de arma e hoje se sabe que participa de clubes de atiradores – e atirar sete vezes contra ele. A cena aconteceu no Largo do Racionalista, numa tarde ensolarada cheia de gente e pombas que voaram num enorme círculo, antes de pousar perto de onde ele jazia. Na mesma noite, o telejornal mostrou a justificativa de Tcherenzi para o crime: “Não posso ser complacente com alguém que atenta contra mim. Isso seria ilógico, irracional, inconcebível”. Circularam boatos dizendo que o crime fora motivado por divergências filosóficas. Uhrur Tcherenzi, logicamente, negou.
O filósofo terminou sendo um racional pragmático. Todos temos nossas razões incompreendidas pelo senso comum e nossa própria lógica alheia à lógica comum. Originalíssimo conto, instigante e intrigante. Muito bom!
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 7/8/2008 20:39
Sinceramente, estou aqui relendo seu comentário e cada vez que releio acho a idéia mais brilhante. Uma razão que tentou contato com o senso comum, mas foi incompreendida e repelida. Isolada, ela está prestes a explodir. Por isso, o ser que é dono desta razão, e vai sentir o impacto quando ela for pelos ares, se defende. E cria a lógica alheia à lógica comum, para manter um espaço onde a razão incompreendida possa viver. Uma estufa, onde se mantém uma flor exótica que não pode ter contato com o ar. Se trata de criar uma ficção para abrigar outra que nasceu sozinha.
Marcos Pontes, temos aqui um romance!
É, temos um romance. Coloque-o no papel e será um cult.
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 9/8/2008 15:26
belo texto!
Parabéns!
meus votos e meu carinho
beijo no coração
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