Corpo e Só

1
diasrafael · Rio de Janeiro, RJ
21/7/2008 · 98 · 8
 

Dia 1

O metrô abarrotado parou na estação. Na entrada do vagão havia uma massa concreta de pessoas que por pouco não foi ejetada com a abertura das portas, mas este já seria meu terceiro trem perdido. Ao meu lado, uma branquinha dos cabelos negros e olhos vivos abraçada à sua pasta me olhou com cara de desânimo. Para ela também seria o terceiro. A sirene que sinaliza o fechamento das portas soou. Ninguém havia tentado entrar. Juntei forças e me joguei contra a parede humana. Surpresos com minha brutalidade, os passageiros abriram espaço suficiente, naquelas circunstâncias, para mim e para alguém pequeno como a garota, que se animou e entrou, encaixando-se em mim. Ela estava quase caindo para fora do vagão quando a porta começou a fechar. Passei meu braço por sua cintura e a puxei ainda mais para mim. A porta fechou. Ela tentou disfarçar virando o rosto, mas vi que sorriu.

Dia 2

Lia, era o nome dela. Estudava administração. Estava no sétimo período. Tinha um carro. Tinha um noivado, que acabou, ou meio que acabou, há algumas semanas. Não me interessei por suas tragédias pessoais. Não me interesso pelas minhas. Nosso papo corria solto enquanto o chope descia gelado. Ela tinha um rostinho redondo e um nariz que parecia encaixado no meio dele. Era magra, mas tinha corpo. Os olhinhos pareciam sempre molhados, brilhantes.

- Mas e você? Me fala de você! - ela disse.
- Melhor falar de política, futebol...
- Mas você já sabe tudo sobre mim.
- Só o que você quis que eu soubesse.
- Então diz o que você quer saber.
- Me diz uma música que faz você chorar.
- "Outro Alguém".
- Pronto, agora sei tudo sobre você. - e ela riu. - Vamos para um lugar mais aconchegante.
- Tá louco. Nem te conheço.
- Nem vale a pena conhecer.
- Assim, no primeiro encontro...
- Não vai haver um segundo.

O rostinho dela empalideceu. Os olhos brilhavam tanto que eu pensei que ela fosse chorar. Só depois me acostumei, eles estavam desse jeito o tempo todo.

- Melhor assim. - ela disse.

Pegou a bolsa e levantou. Mal tive tempo de deixar uma nota sobre a mesa pagando a conta e de correr atrás dela.

Ela fazia sexo com raiva, o que contrastava com seu corpo delicado, suas unhas pintadas de rosa, sua tatuagem de flor na entrada do púbis. Por várias vezes tentei diminuir o ritmo da coisa, mas ela sempre acelerava, acelerava. Foi bom, mas acabou rápido. Ela parecia ter pressa. De saída, me disse:

- Obrigada. Você me ajudou muito. - fechou a porta e se foi. Não deixou telefone, e-mail, nada.

Dia 3

Eu não tinha pressa, sabia que nos encontraríamos no metrô e em pouco mais de duas semanas minha profecia se cumpriu. Ela sorriu ao me ver. Esquecemos o metrô e seus muros humanos e fomos direto a um bar.

- Meu ex me procurou. - ela disse. - Mandei ele pro inferno.
- Olha que viver sozinho não é fácil.
- A gente nunca tá sozinho.
- Não enquanto existir o metrô.
- Sabe, eu ainda tava noiva quando a gente saiu daquela vez. Tava infeliz, mas não tinha coragem de terminar.
- Coragem às vezes é insistir.
- Vem cá, não tô te entendendo. Você quer que eu volte pra ele?!
- Desde que seja só amanhã de manhã.

O sexo foi calmo dessa vez. Ficamos horas. Parecia aquela coisa tântrica. De quando em quando ela apertava os olhos e se arrepiava todinha. Era um belo espetáculo pra se apreciar. Decidimos que era uma boa ocasião para trocarmos telefones. Não é todo dia que se encontra sexo casual de qualidade dando sopa por aí.

Dia 4

Logo no dia seguinte o telefone tocou. Eram 7 da manhã. O carro dela não queria pegar e ela tinha uma entrevista de emprego às 9. Fui buscá-la. Ela morava numa casa bacana de subúrbio. Veio toda bem vestida, maquiada, perfumada, cabelo solto. Se um dia eu fosse casar, ia querer uma mulher assim.

- Se arrumou pra conseguir emprego ou marido?
- O que você acha?
- Como esposa eu te contrataria. – e ela riu.

Saí com o carro e começamos a rodar.

- Tô nervosa. Já estou passando da época de estagiar. Não agüento mais.
- Uhm.
- Minha mãe vive dizendo que eu sou mole demais pra essas coisas.
- É assim mesmo.
- Mas meu pai trabalha numa empresa grande e não arruma nada pra mim. Pode isso?
- Pois é.
- Pro meu irmão ele conseguiu um estágio rapidinho. E olha que ele é mais novo que eu, hein?
- É fogo.
- Preciso conseguir logo uma grana só pra mim. Meu pai é muito pão-duro e eu não gosto de depender dos outros.
- Ô...
- Também não posso reclamar. Quando o assunto é estudo, ele não economiza.

Estávamos próximos a uma estação do metrô. Freei o carro.

- Desce, vai. - eu disse, em tom de quem não negocia.
- Como assim?
- Me telefona quando quiser sexo.

Permaneci olhando para frente. Seus olhos deviam estar brilhando. Não queria olhar para eles. Os carros atrás de nós começaram a buzinar e só ouvi o ruído do cinto sendo desatado e o estrondo da porta batida com fúria.

Dia 5

No sábado telefonei pra ela. Perguntei se queria dar uma passada no meu apartamento para curtirmos a noite. Ela foi. Calça jeans, rabo-de-cavalo, nenhuma maquiagem, algum desodorante anti-transpirante e só. O sexo foi rápido e nervoso. Saí todo arranhado. Fomos comer alguma coisa depois. Ela não dizia nada.

- Olha, sei que fui um cavalo. - eu disse.
- Não quero suas desculpas.
- Na verdade, é mais uma explicação.
- Melhor deixar como está.
- Você é uma garota bacana pra cacete e...
- O que você quer afinal?!
- Nada. Vamos comer.

O bar tinha música ambiente e começou a tocar "Outro Alguém". Ela continuou comendo, impassiva. Na saída, perguntei se ela queria dormir lá em casa, já que estava tarde. Ela não se deu ao trabalho de responder. Entrou num táxi que estava parado na rua e partiu.

Dia 6

Alguns dias depois, meu telefone tocou. Ela foi curta e seca: queria me encontrar. Porém, exigiu duelar em campo neutro e nos encontramos num motel de beira de estrada. O sexo voltou a ser tântrico. Eu já não sabia o que esperar daquela mulher.

- Você me ensinou muita coisa. – ela disparou.
- Tipo?

Silêncio. Ela parecia pensativa.

- Voltei com meu noivo. - disparou.
- E o que foi que eu te ensinei, cacete!?
- Esquece... Me beija.

E a gente se beijou. Um beijo quente, forte...

- Foi nosso último. – ela disse.
- Isso foi um tipo de despedida de solteira? – perguntei, atônito.

Ela se levantou. Seu corpinho desenhou uma silhueta graciosa na meia-luz. Eu não sabia o que fazer.

- Troquei de telefone. - ela disse - Você não me acha mais.
- A gente se vê no metrô.
- Me mudei. Não pego mais metrô.
- Por que isso tudo?
- Tudo tem que ter por quê?
- Decidiu voltar à velha vidinha fiel de sempre?
- Eu tenho uma vida!
- De merda!
- Mas tenho!
- Fica comigo.

Ela segurou meu rosto entre as mãos, os olhinhos brilhavam. Eu sempre achava que ela ia chorar.

- Não estraga, vai. – ela disse. – Não estraga.

E se foi.

Sobre a obra

Um casal descompromissado aprendendo a viver num mundo de vínculos cada vez mais frágeis. Conto livremente inspirado na música de mesmo nome da banda Violins

compartilhe



informações

Downloads
476 downloads

comentários feed

+ comentar
Marcos Pontes
 

A vida é um bumerangue, meu caro, tudo o que vai volta... Interessante o conto, mostra bem a complexidade de nossas cabeças contraditórias. Marcado para o voto.

Marcos Pontes · Eunápolis, BA 17/7/2008 21:59
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
Marcos Pontes
 

Devida e merecidamente votado.

Marcos Pontes · Eunápolis, BA 19/7/2008 14:53
sua opinião: subir
O NOVO POETA.(W.Marques).
 

belo texto,parabéns.votei.

O NOVO POETA.(W.Marques). · Franca, SP 19/7/2008 15:07
sua opinião: subir
rap
 

Vai pra publicação com certeza. Votado!

rap · Brasília, DF 20/7/2008 12:42
sua opinião: subir
Cristiano Melo
 

Interessante fôlego narrativo, muito bom de ler
Parabéns
votos e abraços

Cristiano Melo · Brasília, DF 20/7/2008 12:56
sua opinião: subir
Sônia Brandão
 

De uma forma interessante você conseguiu mostrar a fragilidade de vínculos que existe hoje.
Beijo.

Sônia Brandão · Bauru, SP 20/7/2008 15:31
sua opinião: subir
Compulsão Diária
 

frafilidade dos vínculos e a mulher sabida mantém ´máscara.;))
Gostei muito.

Compulsão Diária · São Paulo, SP 20/7/2008 21:17
sua opinião: subir
clara arruda
 

Por gostar do texto e não andar de metrô te mando para o banco
Publicado.Um beijo em seu coração

clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 21/7/2008 02:36
sua opinião: subir

Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.

baixar
pdf, 7 Kb

veja também

filtro por estado

busca por tag

revista overmundo

Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!

+conheça agora

overmixter

feed

No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!

+conheça o overmixter

 

Creative Commons

alguns direitos reservados