Sinhá Dona estava só, no alpendre da casa assobradada, cosendo roupa para si mesma. Não cosia para vestir homem de casa, como seria comum à sua idade e posição, nem para aformosear algum filho de faces róseas. As comadres da rua, entre curtos olhares, se compadeciam daquela pobre alma desafortunada. Filhos, o Senhor não lhos deu, ainda que as ancas largas causassem impressão de ser boa mulher parideira. Marido forte e polido, Deus deu, Deus tomou ainda cedo, por força de uma tosse que não findava. Ficou assim, viúva prendada e bonita de dar pena, nesse mundo de Jesus. Quando fazia doce era para invejar o ponto. Quando cantava, noite adentro, era ternura e desperdiçar de voz, de não ter a quem ninar naquela casa vazia. Só uma criada, forra, cuidava de ocupar os olhos e as ordens de Sinhá Dona. Homem novo não pisava acolá, nem que fosse padre, para que a carne não estremecesse debaixo do luto. As comadres diziam que carne é coisa do maligno, e mulher deixada ou viúva não pode descuidar da saia.
Deus quis assim. Seria uma viúva a mais. Uma alma caridosa na vila, uma beata casta na paróquia.
Passava as tardes no alpendre, alinhavando e cosendo como uma aranha na teia. Às vezes, despertando de um sono que parecia tomar-lhe a vida e a graça, levantava os olhos para ver os burros que subiam vagarosos até a rua do comércio, com barris de água e cangalhas abarrotadas de farinha. Meninos brincavam na rua, em meio às poças de lama, entretidos com galinhas e bacorinhos.
Assim foram passando os anos e as novenas, enquanto Sinhá Dona perdia o brilho. Viúva enjeitada, só no mundo. As roupas que ela cosia eram como um fio de novelo sem fim.
No termo do dia, à luz trêmula da lamparina, Sinhá Dona andava descalça pela casa vazia, levantando os olhos para ver nas paredes a sombra dos quadris largos - sinal da mulher que haveria de ser parideira e senhora de um homem bom.
Apagando os candeeiros, velava por si mesma. Cantava noite adentro, com voz terna, a ninar cunhã que suspirava e gemia entre lençóis.
É o mundo das DONAS e dos SEUS meu caro Jairo! Cena do interior campesino do Sergipe, do Norte de Minas e seus cablocos, do Maranhão do boi, do Piauà da cachaça Mangueira! Belas observaçoes. Parabéns!
raphaelreys · Montes Claros, MG 4/2/2008 16:19
Obrigado, Raphael.
Essa cena sem lugar e sem tempo definidos pode ser enquadrada em diversos lugares e épocas, tanto fÃsica quanto culturalmente. Decerto, o que hoje se vê nos mais remotos sertões do Brasil já pertenceu ao cotidiano de cidades pequenas e de abastadas capitais.
Retornando ao comentário de Raphael:
A cena não tem endereço conhecido, e poderia ocorrer nos dias atuais em qualquer lugarejo do interior do Brasil. Eu, particularmente, a situo em data anterior a 1888, porque a presença de um negro ou mestiço alforriado pressupõe a existência de cativeiro. Lembro, ainda, que a Lei do Ventre Livre, de 28/09/1871, "deu liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir dessa data, mas os manteve sob a tutela dos seus senhores até atingirem a idade de 21 anos."
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil
Jairo já havia passado aqui em edição e logo votado. Estarei salvando por se tratar do que foi e ainda ecoa e muito por aqui. Abraços.
Ótimo Texto Jairo.ab
Jairo, e foram tantas e tantas ancas não alisadas; carnes não apalpadas, calores não trocados.........um abraço, andre.
Andre Pessego · São Paulo, SP 7/2/2008 07:49
Sabe por que que gosto de contos, pois são( na maioria das vezes) diretos e muito bem concatenados.
Voto pelo bom gosto!
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