A vida é cheia de situações inenarráveis. O que acontece dentro da pele, por exemplo. Seja um furúnculo que ainda não assomou a cabeça ou o sangue quente correndo acelerado pela pulsação que reage a estÃmulos externos. O mundo está repleto de problemas cabeludos e de coisas sublimes. Existir é sempre caminhar numa corda instável, já puÃda pelo tempo. Em busca de algum equilÃbrio, ainda que precário, as pessoas recorrem a templos.
Dizem que andam roubando horas, aceleraram os relógios sem avisar ninguém. Roubaram minutos das horas, horas dos dias, dias das semanas, semanas dos anos, anos dos séculos, séculos dos milênios, milênios das eras, ad infinitum. O paraÃso é prometido num futuro post mortem. Quem é vivo desaparece. Se omite por acreditar que esta passagem é só ensaio, e dias melhores virão nas alturas, quanto menos bruscos forem os movimentos aqui e agora. Em cima da corda frouxa e traiçoeira. A fantasia catastrófica é essa: caminhar pela vida é um perigo. Tudo é arriscado demais, e a especulação do risco motiva a imobilidade assustada. Voar, então, é tão temerário que se proÃbe até falar na idéia. E escrever é vôo. Perdido nesses devaneios, o escritor digeria a imensidão de vetores possÃveis na tentativa de explicação.
Fazia tempo (mesmo tendo sido surrupiada parte dele) que dedicava a vida à função de escriba. Tentava narrar o que está ao alcance dos sentidos. Inventava mundos, colocava os dramas humanos sobre a mesa profana que serve de apoio aos pratos literários oferecidos aos degustadores interessados.
Pensava nos medos da humanidade, nos problemas insolúveis fora do alcance das palavras que, embora sejam instrumentos interessantes de levitação, não dão conta de condensar, nas abstrações que permitem, o mundo como ele é. Ao olhar para a tela em branco, o escritor se deu conta de que não tinha mais nada a dizer.
Lembrava daquela pedrada filosófica que trata de como são inatingÃveis as coisas em si. O cerne do mistério permanece impenetrável, mesmo que se tente descrever os contornos da concha que o guarda. Tomado por todos esses dramas e divagações, sentiu que trabalhar a terra poderia ser mais interessante do que lidar com o verbo aéreo. Quando deu por si, estava já imaginando as plantas florescendo no campo vasto, num fim de tarde. E ele ali, mascando um mato no canto da boca, fumando um palheiro e vendo o crepúsculo. Sonhou acordado com essa vida ligada à germinação e à música dos processos da natureza, em outro ritmo. Silencioso de letras.
Motivado pela ficha técnica não digo nada.
Motivado pelo concurso no qual a frase a encaixar era esta: "Ao olhar para a tela em branco, o escritor se deu conta de que não tinha mais nada a dizer."
Ah! e eu que ia participar...
Mas este belÃssimo texto é invencÃvel.
beijos
Lendo aqui, sem alterações de sentidos, encontrei outros sentidos. Vastos, profundos e instigantes. E eu que sempre achei que ver o crepúsculo mascando um matinho qualquer fosse a única saÃda possÃvel... Tem razão: escrever é vôo. E o seu nos leva junto.
Beijos
Uau Felipe, que texto!
Gostei do termo o que acontece "dentro da pele"... é mais que profundo de uma intensidade incrÃvel.
Quando falas sobre o tempo, fostes realmente como disse Saramar invencÃvel, descreveu a ausência dele... Bom te ler!
A Pedra Filosofal responde...Não sendo de maneira corriqueira teu texto nos leva a perceber as não respostas em tempo, se é que este é limitado ou ilimitado.
Cintia Thome · São Paulo, SP 20/5/2008 04:47
Relido quase dois anos depois, vejo que posso ter feito uma homenagem inconsciente ao Raduan Nassar.
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