Epifania

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Pedro Gontijo · Brasília, DF
19/11/2006 · 82 · 3
 

Foi andando pelos pilotis que, do nada, teve uma epifania. Ouvia Beatles, aquela fase do começo dos anos sessenta que adorava, cantava junto, revoltantemente melancólico. Desligou tudo, tirou os fones do ouvido, parou no meio do prédio e encarou sem querer o porteiro na guarita. Voltou pela grama, sol à cara, pronto para tocar no interfone daquele bloco na Asa Norte que conhecia tão bem. O sol não era mais de outono, de Penny Lane, mas de cerrado.

Um calango do cerrado que cortava caminho pelo descampado num passo cada vez mais apressado. Sem música. Queria ouvir o concerto do vento enquanto andava, tropeçando sem querer nos torrões de barro que encontrava. Foi um choque de realidade para se livrar daquela melancolia toda, estava farto dela: queria era pés no chão. E com chão bem pisado galgou os degraus do bloco onde queria chegar e apertou o interfone.

"Quem é?"
"Sou eu."
"Ué... voltou?"
"Me esqueci de uma coisa."
"O quê?"
"Posso subir?"
"É... tá bom."

A porta abriu-se. Ele subiu os degraus de dois em dois até o segundo andar e encontrou a porta do apartamento aberta. Clarinha mostrava-se pela metade atrás dela, meio surpresa. Parecia alguém com medo. Ele já veio entrando, ela tentou sorrir e fechou a porta atrás dele.

"Se esqueceu do quê? Pensei que tinha levado tudo..."
"Clarinha, olha pra mim."
"Credo, o que aconteceu?"
"Olha pra mim, Clarinha."
"Tô olhando."
"Por acaso tenho cara de idiota?"

A pergunta foi uma paulada. Clarinha arregalou os olhos, não esperava nada parecido. Aliás, não esperava nada, tudo era uma surpresa.

"Como é?"
"É, tenho cara de idiota? De palhaço?"
"Do que você tá falando?"
"Do que devia falar há meses. Por acaso tá escrito 'sou idiota, me enrole' na minha cara? Ein? Porque foi só isso que você fez comigo!"
"Como assim?"
"É, Clara, foi só isso. A gente descobre algo um pelo outro, juntos. Tudo lindo. Depois você some. Dá mil desculpas. E volta. E some de novo. E finge que nada aconteceu. E..."

E não conseguiu se expressar mais sem palavrões. Cansou-se de tudo. Cansou-se da enrolação da outra, de imaginar coisas com ela. Cansou-se de viver como um sonhador, vendo poesia para onde se virasse, numa cidade que é só parque, poética. Cansou-se de escrever fantasias, imaginar que escrevia o que lhe trazia prazer. Sentiu-se idiota, completamente idiota, um idiota totalmente estático por sua idiotice.

Não queria ser mais amigo, queria... paz. Distância e paz. E com essas palavras terminou sua cartase para uma Clara estática, não de idiotice mas de espanto, sem saber se chorava ou se expulsava aquele descontrolado que viera à sua casa para atirar-lhe desaforos à cara. E veio algum silêncio.

Ele se despediu, abriu a porta e deixou-a sem direito de resposta, pois, mesmo se o tivesse, permaneceria muda. Pensou que se ela de fato não o achasse idiota, em poucas horas o rotularia de louco, barraqueiro, sem talento algum para resolver as querelas amorosas como um homem. Entreteu-se com esse pensamento e ganhou a quadra, descendo do prédio. Agora sim vivia na realidade, agora sim vivia no mundo. E Sargent Pepper's Lonely Hearts Club Band era agora lúdico, divertidíssimo.

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informações

Autoria
Pedro Gontijo
Ficha técnica
Crônica
Novembro de 2006
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Ana Cullen
 

Fantástico... cheio de paisagens e sentimentos tão conhecidos! Prefiro muito mais esse seu estilo mais crônica do que o dos sonetos, esse tá mais solto, mais verdadeiro...
Abraços!

Ana Cullen · Brasília, DF 27/11/2006 11:07
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Pedro Gontijo
 

Concordo. Sonetos são áureos, verdadeiras colunas neoclássicas. É como o jazz, ou a ópera, ou as tocatas barrocas: lindos, mas dão indigestão se "comer" demais.

A crônica é o dia-a-dia. A gente não pensa em soneto, pensa em diálogos.

Obrigado, e abraço!

Pedro Gontijo · Brasília, DF 28/11/2006 23:20
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Humberto Firmo
 

É calango virando gente...

muito bom!

Humberto Firmo · Brasília, DF 1/1/2008 16:02
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