Ãmpeto

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Thiago Perpétuo · Brasília, DF
9/9/2006 · 59 · 9
 

Ãmpeto

Abreviou a fala na metade. Espantou o passarinho e revoou. Pasmou a conversa de bar e travou o gole. O fulgor de um olhar definitivo, talvez no horizonte foi deitar. Levantou-se com a urgência das lavas vulcânicas, ganhando o céu com majestade. Não passou a vista na trupe, tantos carnavais. O chope veria murchar seu colarinho. Nem do paletó que abraçava a cadeira de boteco quis lembrar. Teve o ímpeto de ir e foi. Quase voou. Sua sombra fez o que fez para poder acompanhá-lo. Os olhares não fizeram não, e como se de fato soubessem para aonde ele iria, resignaram a voz da busca. Um suspiro ou dois; talvez vontade, talvez inveja. Copos ao alto, “Brindemosâ€. Brindou-se ao homem ido, de passagem, que partiu.

De partida, a principio não correu, mas que o mundo sob os pés passou ligeiro, isso foi. Havia um Sol à frente, e quase nele esbarrou. Olhava o chão abaixo com interesse breve, seus olhos vertidos em lupas, seus pés eqüinos, ligeiros e firmes. As coisas ao redor sabiam conhecer o caminho errado. Pessoas, carros, árvores carrancudas, e quase a vida, concorriam na passagem, dispostos na direção contrária. Os prédios, impossíveis, zigue-zagueavam à sua frente, zagueiros, forçando a esquiva.

Instintivamente desfez-se da gravata e dos óculos. O sapato esquerdo, que desamarrado o cadarço, reclamava atenção e foi solenemente ignorado. O direito, solenemente abandonado, jaz agora naquela esquina; qual mesmo? Seguia, seguia, numa avidez de criança, como quando a emoção de se perder um trem faz o coração chegar primeiro. Arfava. Pulsava. Corria, corria. As mãos estendidas iam à frente, como recurso traiçoeiro de chagar ao destino antes mesmo do corpo, como se o próprio corpo quisesse abandonar os limites de si e partir mais e mais.

E olhe lá...
A mulher ao portão, cabisbaixa do cotidiano. Qual não foi o espanto, viu surgir como do nada o marido em lágrimas, esbaforido, maltrapilho, desengonçado, as lágrimas rolando, rolando; e ela de chave na mão, entre o suspiro desgraçado, que precede as más novas, e o grito incontido, que sucede o mau agouro. Mas nem uma coisa, nem outra. Fora pega totalmente desarmada com um beijo desesperado, urgente, um abraço de tantos braços, inflamado, apropriado para os minutos de desconsolo ante o juízo final. Não sabia se fechava os olhos entregue à emoção, e seguia à risca a etiqueta dos casais, ou se ficava vigilante, arregalada, para confirmar que atrás de si ou de seu parceiro, eterno parceiro, não vinha lá uma turba de bárbaros a açoitar e flagelar a cena.

Fora erguida ao céu como um achado raro, e fosse o caso de a Loteca ter-lhes sorrido a sorte, haveria de supor louco o marido, e até perdoar tão benéfica loucura. De volta ao chão engoliu as palavras, ou ainda, impediu a indelicadeza de perguntas desnecessárias. Encarou o doido, e viu além dos olhos. Havia ali uma ancestral necessidade de bem querer, de devoção, de dar-se sem se dar conta de contrapartidas. Em suma, teve o quinhão de afeto destinado às deusas do amor. Devolveu os beijos, cada um deles, em intensidade e medidas, e compactuou com o ímpeto irreversível querer morrer de amor e continuar vivendo.

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por Thiago Perpétuo
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Conto, dentre tantos.
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Fernanda Nogueira
 

Dá desespero.
É gostoso, flui majestosamente!
Parabéns, Thiago!
Belo texto!

Fernanda Nogueira · Belo Horizonte, MG 5/9/2006 23:35
2 pessoas acharam útil · sua opinião: subir
Luciana Hernandes
 

o conteúdo é auto-biográfico?

Luciana Hernandes · Cuiabá, MT 6/9/2006 11:22
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
Thiago Perpétuo
 

Bem... o desejo é auto-biográfico? Se sim...

Thiago Perpétuo · Brasília, DF 6/9/2006 11:52
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Ana Cullen
 

Que lindo......
Não sabia que tu escrevia tão bem assim seu coisa!!!

Ana Cullen · Brasília, DF 6/9/2006 19:23
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Fábio Fernandes
 

Meio Luiz Vilela. Interessante.

Fábio Fernandes · São Paulo, SP 9/9/2006 07:51
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
Thiago Perpétuo
 

Luiz Vilela... nossa! Muito grato, sinceramente, pelo elogio (muito embora discorde da opinião). :)

Thiago Perpétuo · Brasília, DF 9/9/2006 12:53
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Camila Neves
 

Pára com esse muito embora Grrrr.
O comentário veio meio tarde demais, já fez a m...

Camila Neves · Brasília, DF 7/5/2007 15:18
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Thiago Perpétuo
 

hahahahaha... o "muito embora" está em todos os cantos!!!

Thiago Perpétuo · Brasília, DF 8/5/2007 01:31
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Camila Neves
 

Paaaaara Thiagoooo. Só porque a tia do cursinho deixou!!!

Camila Neves · Brasília, DF 11/5/2007 17:03
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