Puxas profundamente o ar pelo nariz.
Fazes força para que os pulmões continuem funcionando.
Uma sensação de incompletude te atinge no meio da tarde.
Percebes que talvez não consigas chegar até a noite.
Não sentes medo. Nunca mais sentirás medo.
Nunca mais sentirás nada.
E assim fiquei, insensÃvel. Meu corpo parou de sentir tudo que acontecia ao redor dele. Eu continuava vivo, porém não estava mais vivo. Seguia caminhando sobre a terra. Seguia comendo. Seguia vomitando. Seguia falando. Só não sentia. Era a morte dos sentidos. Mas não me compreendam mal: eu ainda tinha o tato. Eu ainda tinha visão e audição. Ainda tinha a capacidade de distinguir os gostos e os cheiros. Só não sentia.
De qualquer forma, não parecia fazer muita falta. Aparentemente minha vida continuava a mesma. Eu fazia todas as coisas que tinha que fazer. Trabalhava, dormia, estudava, descansava, trepava igual. Me drogava, igual. Me embebedava, igual. Tudo, igual. Só não sentia.
Só que, depois de um tempo, comecei a me entediar com as coisas. Da minha vida sem sentido. Da minha trepada sem sentido. Do meu trabalho sem sentido. Dos vômitos sem sentido. E nem era um tédio daqueles que sufocam. Era um tédio morno. Um tédio chato. Mais chato que um tédio normal. Mas como eu não sentia nada, também não sentia tédio. Eu sabia que ele estava ali. Era um tédio racional. Um tédio no qual eu me encontrava submerso, mas não o sentia. E por não senti-lo, não fazia nada para mudar.
Dessa forma, não senti quando minha namorada cortou os pulsos. Não senti o corte e não senti a falta dela. Logo adiante encontrei outra namorada que, caso eu sentisse algo, diria que era até mais gostosa que a anterior. A namorada de número 02 - vamos chamá-la assim para facilitar a compreensão - também se matou. Gás. E eu, nada. Nem uma tosse sequer. A número 03, décimo quinto andar do prédio. Não senti o impacto. Número 04, overdose. E assim poderÃamos seguir por um bom tempo aqui contando. Meu pequeno inventário de suicÃdios amorosos. Se eu tivesse capacidade de sentir algo poderia pensar que era eu quem estava causando todos aqueles suicÃdios à minha volta.
Depois de um tempo, poderia começar a perceber também que algumas pessoas que eu conhecia estavam cometendo crimes. Meu chefe número 01 - espero que já tenham entendido a numeração - matou sua secretária. O chefe número 02 pôs fogo no prédio. o número 03 estuprou a secretária 02. O 04 cometeu outro suicÃdio amoroso. O 05 adentrou a sala portando dois fuzis. Ficou durante horas falando coisas que eu não entendi e nem fiz questão de entender. Depois homens vestidos de preto entraram pela mesma porta e deram tiros nele. Eu não senti. Nada.
Estes mesmos homens me levaram até uma ambulância e me disseram que eu estava em estado de choque. Eles disseram isso. Eu não sentia isso. Mas achei que era uma boa resposta para todas aquelas mudanças de rostos ao meu redor. Era isso. Durante toda a minha vida eu estive em estado de choque. Eu não era insensÃvel. Eu estava em estado de choque. Eu não era insensÃvel. Eu estava em estado de choque.
Então eles me trataram. Deram-me remédios. Deixaram-me descansar. Por muito tempo. Em uma sala branca. Faziam-me conversar, mesmo contra minha vontade. Perguntaram sobre meus pais, sobre minha famÃlia, sobre minhas namoradas. Deram-me mais remédios. Outras conversas. Outras tantas perguntas. Outras famÃlias, outros pais, outras namoradas. O meu chefe. Falavam sobre tudo.
Como eu dava todas as respostas que eles gostavam de ouvir e tomava todos os medicamentos que eles me davam, eles decidiram que eu era saudável. Meu jeito calado era um sintoma pós-traumático. Se eu sentisse algo, teria me dado conta de que eu devo ter tido um trauma bem novinho. Desde que conheço por gente eu sou calado. E não sinto nada.
Se bem que, não é verdade. Às vezes, quando estou dormindo, eu sonho que um homem está segurando minha cabeça dentro de um vaso sanitário. Sua mão segura minha nuca e ele segue me afogando. Com força. No sonho, os dedos dele seguram a raiz dos meus cabelos. Eu me debato com muita força. Mas ele é mais forte do que eu. Eu o ouço falando coisas que não consigo decifrar. E quando estou quase morrendo, ele me solta. Eu respiro aliviado. Olho para os lados, mas ele não está mais lá.
No sonho, eu sinto. Em algum lugar de mim, existe uma sensação de incompletude. Eu sinto que sou incompleto. E choro. Baixinho. E acordo soluçando. Todo suado e molhado. Então eu tomo um banho e vou trabalhar, outra vez.
Max, que vida desgraçada você arranjou para este personagem!
Sinal dos nossos tempos. Mas como disse Picasso, " Há pessoas que transformam o sol em uma pequena mancha amarela. Porém, há também as que fazem de uma simples mancha amarela, o próprio sol."
Abração, Ivette G M
Ola Ivette!
Pois é... sou meio malvado com meus personagens... mas se não for para pensar essas coisas ruins com eles no papel (na tela) acho que não saberia escrever...
Deixo as manchas amarelas para a literatura... tentando encontrar o sol no dia a dia!
Brigadão pelo comentário!
Que transe absurdo !...a inversão de dimensões...anseios e duvidas sobre tudo...que passividade complacente...será ?
muito bom !
abraço, volto
Beleza de conto, Max.
Denso, com um personagem com uma personalidade das mais complexas, nada banal.
abraço. Votado.
Opa!!!
Obrigado pelos votos e comentários!
Quem é saudavel ?
Quem é normal ?
Quem é completo ?
Quando souberem a resposta, me avisem, por favor...
Muito interessante seu texto...
Venha conhecer dona Verbena, ela ainda aguarda um pouco de atenção...http://www.overmundo.com.br/banco/verbena-preocupacao-em-pessoa
R. Rimet
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