Ela chegou com a nuvem do azar acima da cabeça, como um chapéu de sol furado, por onde desce os pingos d'água. Fazia tempo que se via aquela cena e cada vez mais se apertava o nó do peito, toda vez que entrava em casa. Limpou os chinelos no tapete pelanco da porta da cozinha, repousando-os atrás da grade da geladeira, cortou uma fatia de bolo imaginário como quem quer alegrar a fome. Quem não tem comida, sente só o cheiro do tempero.
Abaixou até o balde com um caneco vermelho, vlup pra cima, glup pra baixo, banhou-se como se fosse apenas uma falta de água temporária. Pelejou alguns rabiscos num papel que trazia da rua. Folheou um pequeno caderno de retratos desses com a paisagem mais bonita da cidade estampada na capa, como se zombasse de toda a tristeza da situação. Enxugou o olho esquerdo, dizendo a si mesmo que era só um cisco.
Um cisco de 7 anos que insistia em incomodar todas as 21h e 14min das noites de segunda-feira. Despencou para trás de cansaço. Jazeu como quem dorme.
Uma maneira muito sutil de descrever a fome, a miséria. Parabéns.
Simas · Parintins, AM 13/12/2006 13:40
muito bom, parabéns!!
abs.
Eu gostei tanto que meu cisco de 2 anos e meio se manifestou! É a primeira coisa tua que leio e me falou fundo!
cris gonzalez · Rio de Janeiro, RJ 15/12/2006 17:42Valeu pessoas. Particularmente, também sinto algo estranho neste conto. ;)
Artur Finizola · Maceió, AL 17/12/2006 11:52Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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