JOGO DE AZAR
Já há mais ou menos seis anos que Joel e Barnabé viviam naquele barraco, próximo de um lixão. Viviam dele. O barraco fora construÃdo por Joel quando, sem teto e sem famÃlia, andarilho desse mundão de Deus, resolveu fixar residência em um único lugar.
Juntara madeira, papelão, pedaços de telha de amianto, tecido, enfim, tudo o que podia ser recolhido em um lixão e que julgara aproveitável.
Joel era caprichoso, seu barraco ficara bonito, tinha até cortinas. Na frente, um jardinzinho feito com vasos e mudas, também recolhidos na sua catação diária.
Barnabé aparecera no lugar e passara a viver do lixão, como todos que o frequentavam.Era alegre, boa praça, amistoso e prestativo. O oposto de Joel.
Conversa vai, conversa vem, Joel convidou Barnabé para morar em seu barraco.
Estabeleceram algumas regras para uma boa convivência: só beberiam no barraco, onde um controlaria o outro para evitar excessos. Frequentar botecos nem pensar. Nenhum dos dois levaria mulher para a casa. Mulher é motivo certo para dar confusão. Quando precisassem dela, se serviriam da casa da Tuca.
Fariam as compras juntos para a alimentação e todas as necessidades da casa, dividindo despesas. A limpeza da casa seria revezada a cada mês, bem como as tarefas culinárias.
Vinham vivendo dessa maneira e as coisas andavam muito bem. Tudo certinho.
Ao fim das tardes iam juntos, a um depósito de sucata e a um ferro velho, vender o produto da catação e recebiam seus respectivos pagamentos. Da maneira como dividiam as despesas, comiam e bebiam bem e até sobrava uma pequena economia, ao final do mês.
Após o jantar, sentavam-se na porta do barraco e tomavam uma cachacinha. Joel fumava um cigarro e Barnabé cantava e tocava seu violão ensebado, no qual faltava uma corda.
Certo dia Barnabé trouxe um pedaço de madeira, que encontrara no lixão, com uma frase gravada. Pendurou-a na porta da casa e, quando Joel chegou, leram juntos o que estava escrito: “ Bebo quando comemoro e à s vezes quando não há nada para comemorarâ€. Miguel de Cervantes.
Eles deram uma boa gargalhada e Barnabé disse:†Eta cara supimpa esse tal de Miguel! Ele sabe das coisaâ€. Ao que Joel retrucou: “ Será que ele mora por aqui? No lixão eu nunca vi. Só se for o Miguelito, filho da dona Conceição, a mulher do Zé Pavioâ€. “Não pode sê não Joel. Ele não sabe lê e nem escrevê. É mais burro que nóis doisâ€.
O certo é que acharam a placa uma beleza e a deixaram dependurada sobre a porta, na parede do barraco. O barraco, agora, parecia completamente pronto.
A vida seguia seu curso em uma rotina interminável, mas satisfatória. Sem queixas, uma amizade forte, baseada na confiança mútua, uma vida organizada.
Mas, o ser humano é uma criatura imprevisÃvel e eternamente insatisfeita. Parece que não sabe viver com tranquilidade e felicidade.Necessita de problemas e os arranja com a maior facilidade. Se não os tem, vai procurá-los.
No lixão, Joel encontrou um saco plástico com cartas de baralho em seu interior. Elas estavam em muito boas condições. Conferiu-as e constatou que eram dois baralhos, mas em um deles faltava uma carta, o número 6, de copas.
Levou as cartas para casa e sugeriu a Barnabé que jogassem para se divertir. Barnabé gostou da idéia.
Experimentaram alguns jogos que ambos conheciam e se fixaram mais em “buracoâ€. Esta passou a ser mais um diversão para eles. Quando não tocavam violão e cantavam, jogavam buraco.
Joel, por algum motivo, não disse nada sobre a carta que faltava e começou a perceber que podia tirar proveito disso e ganhar o jogo. Marcou todas as cartas de número 6. Quando teve certeza absoluta de como trapacear para ganhar, propôs a Barnabé jogarem à dinheiro. No princÃpio Barnabé relutou um pouco, mas depois aceitou a proposta com a condição de jogarem apenas pequenas importâncias, para não ficarem viciados e também porque percebeu que Joel jogava melhor do que ele, ou, pelo menos, tinha mais sorte, porque ganhava sempre. Argumentou que temia alguma desavença entre eles, por causa do jogo a dinheiro.
Joel aceitou as condições de Barnabé. Como planejava ganhar sempre, mesmo em pequenas quantias acabaria auferindo um bom dinheirinho.
Com o passar dos dias e à medida que chegava mais dinheiro ás suas mãos, a cobiça de Joel não tinha mais limites. Esqueceu a ética e a moralidade. Já não via Barnabé como amigo, mas apenas como um adversário a ser vencido e espoliado, até onde desse.
Não aceitou os argumentos de Barnabé para que parassem com a jogatina, ou pelo menos, que não fosse mais a dinheiro. Desafiou-o, perguntando se estava com medo, se não era homem, se estava fraquejando. Desafiado, Barnabé continuou a jogar e a perder no jogo.
Já fazia cinco meses que o jogo passara a ser a única diversão deles. O ganhador era sempre Joel. Barnabé via seus minguados recursos desaparecerem. A coisa chegara a tal ponto que Barnabé já estava devendo ao Joel. Praticamente estava comendo e bebendo às custas do amigo, porque ele não conseguia mais contribuir com a sua parte na manutenção da casa, cumprindo o tratado.
Estes fatos estavam começando a desesperar Barnabé. Para piorar, Joel estava se tornando incisivo na cobrança e tinham começado a discutir, coisa que nunca tinha acontecido antes.
Barnabé propôs ao Joel que o melhor seria ele ir embora, mudar de casa. Parando de jogar, conseguiria pagar sua dÃvida.
Joel não queria ouvir falar nisso. Não aceitava que Barnabé se mudasse e não aceitava parar de jogar. Barnabé ofereceu-lhe seu violão, seu único bem, para saldar parte da dÃvida. Joel não aceitou, argumentando que não sabia tocar e de nada lhe serviria o instrumento. Colocara Barnabé contra a parede. Ele estava sem saÃda.
Barnabé começou a pensar em fugir dali. Seria a única forma de reconquistar sua liberdade e sua vida de volta. Ele se tornara um prisioneiro de Joel, um escravo de seu capricho.
Os dias continuaram passando. Joel, a cada vez que ganhava no jogo, se regozijava mais e deu de fazer caçoada do amigo, chamando-o de “pato†e, ao mesmo tempo, rejubilava-se com sua esperteza. Como Barnabé era burro! Não percebia a trapaça no jogo? O idiota merecia mesmo.
Aquele violão, aquela cantoria, aquela cara de eterno alegrão do Barnabé, já mostrava quem era ele: um boboca. Seu júbilo aumentava mais ainda quando contava o dinheiro que ganhava de Barnabé. E assim os dias continuavam e Barnabé cada vez mais angustiado.
Uma certa manhã bem cedo bateram à porta do barraco. Barnabé atendeu, com cara de sono e pode ver várias pessoas, catadores do lixão. Perguntou o que estava havendo e ouviu deles: “ Nada não, Barnabé. Só viemo avisá que achamo o Joel morto, lá no território dele, no lixão. A cabeça tá partida no meio e, em cima do peito tem uma carta de baralho. É o número 6 de copas".
Conto
Ivete,
que conto!!!
Quando você aparece você nos premia com ótimos textos
Esse conto me faz pensar que se a justiça dos homens é cega,
a justiça divina nunca falla.
A diferença entre o bem e o mal é só uma; o caráter
bjs
Eita saudade dessa minha amiga...
Que conto fabuloso, fiz uma ótima leitura, parabéns pelo trabalho...Deixo aqui minha sincera admiração por vc. Beijãooo
Meu muito obrigada à Doroni e ao Delen pelo carinho. Abração, Ivette
Ivette G.M. · Cotia, SP 4/6/2009 10:47
Ivete,
Parabéns pelo belo texto. Engenhoso e realista.
Volto,
Abraços.
Narradora envolvente, a contista Ivette, tal como a aranha tece a sua teia, cria personagens nos fazendo crê-los vivos, enredados em suas vidinhas, onde a contista consegue enxergar o humano que há no barro de que somos feitos,ou luzes nas cinzas que são as vidas de muitos, e o que há de mistérios nos destinos, nos fazendo refletir em que tipo de "vidinhas" vamos levando.
Joel e Barnabé souberam criar um paraÃso em meio à miséria. Pareciam felizes como um Gandhi a quem o pouco bastava. Joel e Barnabé viviam ali alegria maior do que a de muitos castelos e mansões: a alegria da simplicidade. Até que um dia aparece, tal qual a serpente e sua maçã no "paraÃso", a tentação na forma de um baralho: é a desarmonia, o vÃcio, a cupidez que chegam. Duas lições, das muitas, que podemos extrair do conto: não é difÃcil construir a felicidade. E é muito fácil destruÃ-la.
Sergio, foi um prazer receber sua leitura do meu conto. Obrigada.
Onivaldo, como sempre, seus comentários só enriquecem o escritor.
Abração. Ivette G M
Ivette:
Como sempre um texto riquÃssimo .
Voce explora muito bem os detalhes
Adorei o Miguel de Cervantes
Certamente ele deveria morar na vizinhança
kkkkkkkkkkkkk !
Vizinho de um gordo chamado Sancho Panza!
Beijo
Ola Ivette
Muito bom o seu conto, que permeia pelos valores, onde se incluem a amizade, o egoismo, o ter, o ser... as relações de poder e... a honestidade que é muito mais facil de se ter (ou se ser) se não houverem "6 de Copas" ou Baralhos como Oportunidades...
Votado com muito merecimento!
beijosss
GaMitto
ET.: Votado por ora e tão logo entre em votação - rs
GaMitto
Nossa! Que história bem narrada, triste e na minha opinião, com
final feliz... O trapaceiro, traidor teve o fim que mereceu.
Fazer o bem, sem olhar à quem, nem sempre dá certo...
Amei o seu conto e mal posso esperar para votar...
Beijos, querida Ivette
Ivette G.M. · Cotia (SP)
JOGO DE AZAR
Uma tristeza muto grande.
Dá é vontade de chorar.
O dinheiro transforma od humanos, por isso que jesus expulsou os vendilhões do templo.
Esse espÃrito do lucro e do ganho a qualquer custo que é a grande mis~eria do mundo.
Aimda bem que os apostolos tinham os bens em comunhão e ninguém tinha essa de acumular mais e de explorar seu irmão.
Um Conto maravilhoso que lembra o Jesus quando um jovem muito rico queria lhe acompanhar e ele falou para dar tudo aos pobres e o seguir. O Jovem ficou entristecido de largar o ouro.
Parabéns.
Abração Amigo
Olá querida Ivette! Sua narrativa é super envolvente. E que conto!
Que nos mostra os valores; a amizade; a união; a alegria e como tudo isso termina de um momento para o outro quando surge a ambição sem limites, o egoismo, o levar vantagem acima de tudo. Que destroi vidas. Muito bem colocado e enredado. Com um final que deixa por conta do leitor pensar o que aconteceu com Joel.
Parabéns!
Beijos
Patty
oieee Ivette
Gosto muito de seus textos. Muito boa este conto, reflexivo e com um sinal feliz.
kissess;;
Naith
Mais um de seus interessantes textos. Muito bom mesmo. Bj
Juscelino Mendes · Campinas, SP 6/6/2009 13:11
Booommm Diaaa sempre menina Ivette!
Muito bom seu conto, que nos faz refletir sobre os valores e comportamentos humanos, do nosso dia-a-dia, com o otimismo inerente de sua alma menina, onde no final, o bem prevalece!
Karinhos Kentinhos,
ZecaFeliz - gaDs!
Gostei, você é uma contista de mão cheia.
Abraço, Vasqs
Primeiro pensei que o espoliado fosse se matar, me anguistiei com ele, sofri junto suas dÃvidas, mas o final até que me alegrou , confesso. Gostei muito, vc conta bem. abraço forte
Diacui Pataxo · Ilhéus, BA 6/6/2009 19:53
Brilhante seu texto com propostas sociais e protestos em uma linda narrativa. Amie. Guerreira.
Gostaria de seu comentário inteligente. Beijos.
http://www.overmundo.com.br/banco/joga-me-teu-fardo
Querida Ivette, muito boa sua narrativa, aliás como de costume, sempre ressaltando a vida como ela é. Bjs.
Daniele Boechat · Rio de Janeiro, RJ 7/6/2009 13:56Alo, ola, Ivette. Avisos de comentários que v. tem recebido estão vindo pra mim, pro meu e-mail, até agora 3. Não sei porque isso acontece, de qq. modo fique atenta, de repente lhe chegam comentários e v. não fica sabendo - a não ser que os avisos estejam chegando pra nós dois. Ok? Abraço, Vasqs
Vasqs · São Paulo, SP 7/6/2009 14:14
Hei Ivette. Fico até inibido para comentar sua bela obra. Que Deus te ilumine em todas as suas iniciativas.
Vida plena.
Tenha uma boa semana. jbconrado.
Obrigada pelo alerta, Vasqs. Computador é meio burro mesmo.
Abração, Ivette G M
Gostei. Boa narrativa e gostei do tema. Parabéns. Votado!
sheila duarte · São Paulo, SP 7/6/2009 20:10
Ivete
Excelente conto que traduz uma realidade de vida
Uma passagem onde a ganância impõe contra a honestidade.
Gostei desse conto e de outros que tenho lido.
Parabéns por sua presença nesse overmundo.
Um beijo
Excelente conto, Ivette!
Cruel e realista.
Bjs.
Ivette,
Um texto perfeito..........
Nota 10........
Que narrativa envolvente amiga!
Demoro a visitar-lhe, mas qdo , deleito-me na tua ~inspiração!
Parabéns!
bjs
seu texto é maravilhoso querida amiga, parbéns.
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