Vigia o regime militar no Brasil. A censura imposta a tudo, do teatro ao cinema , da imprensa à literatura. Da música às manifestações sociais quaisquer. A vida era irrespirável...
Vez por outra paro e não penso.
Quero até morrer
Sentir o beijo da morte, frio.
Que mais querer?
Tudo, todos: nada.
A imundície e as nulidades
Prosperam e aquela continua
Os porcos são os donos
O país ferve de podridão.
E as moscas em louca sanha
Vorazes, varejam os restos do homem.
Daquilo que um dia foi povo,
Hoje, farrapo, pisado, humilhado, escachado.
Vez por outra paro e não penso.
Quero até matar.
08/11/1975
Da vida comum
O relógio marca e rege
O descompasso da vida
Roncam os motores do progresso
Sobre o esforço das massas famintas
Um pila pela tua hora,
Dois pela tua honra,
Três pela tua alma e mais um
Pela tua vida
De fome
De susto, preso,
Roda fábricas e construções.
De marmita
Chinelo de borracha e sapato barato,
Ergues a casa que não é tua
E ajustas parafusos que se perderam em mil mercados.
De fome e de susto, preso,
Continuarás
Até a morte precoce
Também, irmão,
Não nos deram a justa paga
Não, o certo é:
Roubam-nos a vida e a sorte.
08/08/1976
Saia daí e venha pro lado de cá!Sai da calma, filho,
Que a vida é puro sangue
Hoje
Vem olhar o morto no chão
De fome e frio
Sai daí, irmão,
Que a vida é puro sangue
Hoje
Vem olhar o chão morto
De ganância que tombam matas
Saiam pra rua
Que a vida é puro sangue
Hoje
Pra que se esconder de si mesmo
Venham ao barro receber os tiros da miséria.
Saiam do circo
Que a vida é puro sangue
Hoje
Estamos montando o ato final
Antes de morrer de pura e besta fome, todos.
Saiam de suas cascas e máscaras,
Ogivas e armaduras protetoras
Hoje
A vida é sangue puro
O circo será dos atores
Hoje
Quando a vida mudou o rumo
Porque saímos todos por sangue
Cobrando tudo que a história nos devia
08/08/1976
***
A Primavera que faremos
No momento que desespero
Cada passo à frente do homem
É um retrocesso
Mais e mais desespero
O medo de morrer
Antes da hora mata
Quantas vidas e tempo perder?
Mas,
Sempre perder não é o fim único!
O progresso do homem
É feito com as botas sujas
De sangue do homem
A podridão submete
À fome a massa que trabalha
Só a consciência do desespero
Pode inverter a marcha
Deste podre progresso
Se a Primavera é o mundo novo,
Não é de admirar
Que se tenha que explodir,
Antes, este velho mundo.
Acordem!
Que os donos do velho mundo
Vão apodrecer e secar a árvore.
É preciso retirá-los dos galhos.
23/01/1977
***
As mãos nas amarras
Amarás o irmão
Que sorte não teve
Tiveste a morte
Rainha revelada
Por céus e espada
Na vida em escada
Degrau a degrau
Onde ficaste?
Que teu irmão chora
A fome demora
Não mais foi embora
Ficou-lhe a saudade
O estômago na cabeça
Aos céus suspiros
Para que logo envelheça
E receba pensão
Para comprar o pão
***
No céu, de escuro e profundo azul,
A lua cheia, branca e brincalhona
Contenta-se em ser mais brilhante
Que a lâmpada de mercúrio sob minha janela
Parado na calçada,
Aplaudindo a natureza
Vai o bêbado escorar-se no poste,
Ri pra lua e abusa da lâmpada
Faz pontaria,
Tem como alvo a lua:
Voa a pedra
Quebra-se a lâmpada...
Que a lua solitária permanece brincalhona
E o bêbado vai-se curando, lentamente.
***
A certeza só pode nascer da dúvida
Ter dúvida é estar vivo
Certo de que a verdade
Só inspira confiança
Se for questionada
Como quereis fazer viver certezas
Sem deixar lugar a dúvidas?
***
Uns chãos que me puxam,
De sob os pés
Qual tapete levado
Por falta de pagamento
***
Dor
Profundo
Escuro
Abismo
Desesperado
E só.
Adro, passando pra deixar um abraço e boa sorte para estes versos e pra você também.
Volto em agosto. Cuide-se!
mille baci
Bea
Agradecido, Bea.
Sem compulsão, os dias serão menos movimentados,
mas, fortalecido por tuas próprias recomendações,
sairei ao sol e, talvez, até à lua, para suprir a ausência tua.
beijos mis, meus pra ti, a gosto!
Adroaldo,
Seus versos remetem a uma época metafórica da sociedade, onde os frascos fracos de ignorância, abarrotados de insana perseguição às diferenças, aos que não eram moscas, fez expressão e contaminou a todo um coletivo de pessoas que não podiam ser quem eram, e que não podiam defender quem queria ser o que quisessem... Hoje a "danada" essência policialesca humana continua, de maneira mais velada, e em outros momentos mais explícita, mas presente, faz parte do ser, essa perseguição do diferente, com a torpe justificativa de manutenção do status quo.
Seus versos são viscerais, de dentro de um coração que simplesmente queria "bater".
Muito inspirador a reflexões.
abraço
Belo retrato de um tempo que não queremos mais.
Um abraço
Mais um trabalho de "MESTRE POETA" !
Nagnifico!!!
Meus votos humildes diante da grandeza do texto!
Beijo no coração e meus aplausos!
Um beijo grande e votando em seu maravilhoso texto
Esse trecho é muito real,tem gente que ja começa a morrer quando nasce
''Mais e mais desespero ,o medo de morrer antes da morte mata''
Saiam pra rua
Que a vida é puro sangue
Hoje
Pra que se esconder de si mesmo
Venham ao barro receber os tiros da miséria
nesses versos deixo meu imenso carinho.
Adroldo,
Teus poemas nos remetem aos negros tempos da ditadura militar e chega até os agonizantes dias atuais quando o meio ambiente esta sendo tão devastado, onde não há solidariedade, a injustica campeia, a corrupção e o perigo se alastram. Mas a lua continua na dela, juntamente com o alegre bebado, enquanto o povo sofre com baixos salarios e nós continuamos num abismo e desesperadamente sós. Tristeza !
Bjsssss
E a corrente hem? Ainda estamos presos num regime que nos agride e nos explora. É verdade, não reagimos e nossa fraqueza é a força da corrente. Bravo!!
Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 8/7/2008 23:35
Adro,
Achei incrível como naquele tempo eras mais Spíndola e Correa do que Bauer. Sou fã daquela época e da maneira intensa com fazíamos versos contra 'tudo isto que está aí'.
A tibiez deste nosso pessoal hoje - até mesmo para fazer versos - me deixa bem ranzinza, sabia?
Abs
Spírito,
Porque os fados deram-me esse tempo de não-trabalho formal, sem as musas por perto, que as dores e mesmo o pânico inicial afastaram, fui às gavetas e achei essas mal traçadas, do que fiz uma reedição rápida, por datas, sem muito nexo a guiar o conjunto, o inverso do que faria um editor literário.
Aí ter surgido o que te parece uma veia minha mais atenta ao social, a de Spíndola Corrêa, do que de Bauer.
E é vero.
Após os anos 80, como se verá num capítulo de Poemethos que talvez já inicie no 4 e vai chegar ao 5, a paixão, o amor, a vida comum das pessoas e o sal delas, que são as pulsações a mais dos corações e mesmo os apelos da libido começam a se emancipar, que reprimidas estavam por aquelas dores todas que não queremos para ninguém e contra o que lutamos.
Eu, pessoalmente, parei de fazer versos por muito tempo, desde que havia uma estratégia política e pública para disputar com milhões em movimento, só retorno a uma ação, digamos assim, mais pessoal e individual em março de 2005, pelas razões que já falei aqui e não me convém mais repetir, mas estão aí na cena, na conjuntura, na ausência coletiva e pública de uma estratégia dos de baixo para si.
Bem observado, guri.
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O regime é o mesmo de há tantos séculos, os de cima determinados a amesquinhar o poder que detêm fruto das relações sociais que os permitem se impor aos de baixo. Nada humano, tudo muito egoísta e, em alguns, até patético, dada a condição de miséria da maior parcela de semelhantes, da humanidade, quando a tecnologia já resolveu todos os problemas de existência da espécie, Doroni.
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Muda, surda e de poucos gestos, Edimo.
Mas existente e, pode-se dizer, observada a série histórica, vitoriosa em muitos aspectos, posto que, na resenha do nosso país, vivemos já - e por aquelas sofridas conquistas - o mais extenso período democrático sem a violência generalizada do estado armado contra os direitos do cidadão, embora aqui e ali pipoquem os ecos do passado recente em que a farda paga por nossos impostos é enxovalhada por meia-dúzia de criminosos que vão além das chinelas apenas porque se ajuizam acobertados por ela e, algumas vezes, por superiores imediatos deles.
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Recebo feliz e solidário teu carinho, Clara.
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Ju, és estímulo agradável e compreensivo a que continue eu perserverando. Agradecido.
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Comovido, agradeço, o coração aos pinotes, feliz, Celina.
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Metáfora sólida, enrascada em pólvora, chumbo e bala e arame farpado, enrodilhada por fios elétricos e cordas, em paus-de-arara que não eram os singelos meios de transporte do interioor de muitos dos estados do nordeste brasileiro, Cristiano.
Uma metárofa da qual o sangue inda escorre hoje e os cofres guardam segredos além das riquezas amealhadas às custas da opressão e do arbítrio.
Por isso não nos calamos, lá, nem hoje, nem nunca, porque o horror ensina a temer, mais que a dor ensina a gemer.
Adroaldo, virei menino ao ler e reler a cada um dos poemas: uni-du-ni-te... sem jeito, o melhor, eu não sei. Só se sabe, não se mede as marcas do tempo.
Sérgio Franck · Belo Horizonte, MG 9/7/2008 10:43
Querido Adroaldo:
Um tempo que foi
São marcas que ficam
Fincam na tua bela criação.
Beijos_Meus*
*
Amigo Adroaldo.
Em 1975, iniciei minha militância política, fazendo um curso profissionalizante no SENAC-sp, me juntava às corajosas vozes que clamavam nas ruas, contra a tortura e a matança desenfreada, recebendo por vezes golpes de cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo.
- Em nossas almas, para nós os idealistas, ficaram as marcas de sangue daqueles mortos, e a certeza de lutarmos pelos vivos.
Um grande abraço
"Desculpe-me pelo exagerado espaço".
-Xiii... acho que foi coisa dos fantasmas da ditadura...
Abraços
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