Eu costumo contar que durante anos da minha vida não tinha nenhuma noção que era necessário ter dinheiro para viver e sobreviver. Cresci entre fazendeiros e passei a minha infância assistindo aqueles homenzarrões sentados em suas poltronas preferidas, a fumar seus cigarros no desfrute de um ócio remunerado e satisfatório para todos.
Era uma geração atrás da outra que vivia as custas dos bois e outras maneiras produtivas que não exigiam um horário, um local, uma saída para o trabalho.
Cresci vendo chegar comida em casa em abundância e sem notas fiscais ou qualquer outro tipo de pagamento. Na despensa tínhamos uma “túlia”, um enorme balcão com divisórias funda onde cabiam sacas de sessenta quilos dos mantimentos essenciais, tais como feijão, arroz, farinha, açúcar, milho e outros.Os embutidos eram fabricados na fazenda ou ali mesmo na cozinha da nossa casa.
O leite vinha em “tarros” e passávamos uma tarde inteira a sacudir uma latinha de leite ninho cheia de nata fresca, que ao final de tantas sacudidas virava uma manteiga amarelinha e saborosa.
Os pães, bolachinhas e biscoitos eram confeccionados no forno grande que ficava no galpão da lenha. A lenha vinha em “achas” grossas, mais gravetos e toras de madeiras para ascender o fogão e a lareira.
Os doces eram produzidos no quintal da casa onde se colocava no chão uma “trempe” de ferro trançado para apoiar o tacho de cobre e ir mexendo o doce até ficar no ponto.
As frutas nasciam e cresciam ali no quintal que ia de um quarteirão ao outro. Cresci entre parreiras, pessegueiros, laranjeiras, macieiras, ameixeiras, pereiras, figueiras e outras árvores frutíferas deliciosas. A cada estação tínhamos as fruteiras cheias e as compotas se acumulavam nas prateleiras para garantir a sobremesa no inverno. Os legumes e hortaliças vinham da horta, cultivada e aguada todos os dias por um de nós, as cenouras saiam direto da terra para uma batidinha na barra do vestido e iam direto para a boca, cenoura com terra é bom para a saúde diziam por lá.
E ainda tínhamos um galinheiro, que nos garantia a canja de galinha quando se ficava doente ou a galinhada com bastante pimenta nos dias de festejos. Os ovos para a ambrósia, para o papo de anjo, para o merengue, a banha de porco, a carne de ovelha ou de boi e muitas outras coisas vinham direto da fazenda e ali vivíamos na fartura, sem precisar bater ponto, enfrentar o trânsito, agüentar o chefe ou esperar o salário no fim do mês.
Aluguel não existia, a casa era própria. Que se pagava água e luz a cada mês nunca ouvi falar. O gás demorou a chegar e durava um ano, já que o fogão só era usado para esquentar a água do chimarrão ou fazer o café da tarde.
De verdade me lembro de ir ao armazém comprar a erva mate e o café, o resto parecia que caia do céu.
A terra continuava firme, nunca ia se acabar e nem seria invadida, todos os senhores podiam continuar a fumar seus cigarros, a jogar seus carteados, a tomar seu chimarrão, a viver ali placidamente com suas mulheres e filhos num convívio morno entre várias gerações.
Assim passei minha infância e adolescência. Não escolhi um fazendeiro para me casar e muito cedo juntei minha juventude e minha coragem e fui embora dar início a minha própria vida.
Logo após uns quinze dias de casada, me deparei com um homem, que levantou bem cedo e ao invés de ir tomar o costumeiro chimarrão, vestiu o, sobretudo e foi trabalhar. Foi tão diferente, que fiquei ali parada, ainda de camisola, sem saber se fazia o chimarrão ou a mala.
E assim entendi que o meu marido era um funcionário público, mal remunerado que enfrentava o ônibus, tinha chefe, batia ponto e cumpria carga horária. Minha vida se transformou muito desde então, no auge da minha juventude eu era uma senhora casada.
Fui amadurecendo e arriscando minha inteligência e força de trabalho na comunidade onde vivia, comecei então a entender o que minha mãe fazia dia após dia na máquina de costura, que ir para a fazenda significava trabalho e por que meu marido saía tão cedo.
Lembro-me que um dia, passeando em Porto Alegre paramos na frente da Pelaria Européia e eu fiquei apaixonada por um casaco de peles cor-de-rosa. Comentei como que para mim mesma que nunca teria um casaco como aquele ao que ele reagiu dizendo que eu teria sim um casaco de peles, pois ele teria sem dúvida um iate.
Moral da história, eu nunca tive um casaco de peles, ele nunca teve um iate e afinal descobri desolada que dinheiro não dá em árvores.
O texto analisa mesmo que de forma romantica as diferenças de uma vida de latifúndio e uma vida operária. E aponta sutilmente estilos de vida entre um tempo transcorrido entre as décadas 60 /70 e a pós modernidade.
Malu,
Que delicia de texto, uma viagem no tempo, vontade de ir pra fazenda, simplificar a vida...O frenesi insano das grandes cidades, onde cismamos conquistar um lugar ao sol, nos leva a viver uma vida apressada, mal temos tempo para nossos filhos e companheiros, vivemos a pagar contas, muitas vezes pagamos para trabalhar...
Felizmente, consegui reunir forc;as para recomec;ar a vida, agora na tranquilidade da Serra. Que Deus me ajude a criar bem nossa Gabi.
beijos e saudades, Malu
Rodrigo, te amo pra sempre!
Cristiane muito querida,
Eu amo você para sempre.
Conte comigo também para sempre.
Nossa Gabi está aqui neste momento assistindo um filme comigo, depois de ter ido ver o Almir Sarte com o pai. Fique em paz.
Obrigada por gostar do meu texto.
Bjs
um grande texto no sentido exato da palavra.votado.
O NOVO POETA.(W.Marques). · Franca, SP 25/1/2009 22:05
O NOVO POETA
que não seja um elogio, mesmo assim grata pelo voto.
Cada época tem os seus arcanos, sua magia e seus mistérios trancendentais. Cada época tem uma egrégora de onde absorvemos o nosso viver. Notadamente no interior bucólico onde tudo parece nascer simplismente. Os anos 60/70 foram o início do fim dessa magia! Meu voto e meu beijo!
raphaelreys · Montes Claros, MG 26/1/2009 05:38
Raphael, me conte mais e mais da vida, das épocas, dos anos... dos mistérios, da magia ...
Um beijo e grata pelo voto.
Querida Malu,
os textos que vc. escreve é como folhear as páginas de um livro, um velho e bom livro. Interessante que pela tela de um computador possamos sentir a magia dos livros, das histórias e estórias...um beijo da sua grande amiga.
Rouuuuseeeee... minha adorada amiga e companheira de horas felizes como esta e outras nem tanto... Tua amizade é um tesouro.
Obrigada e volte sempre.
Beijo
banha de porco, nata, milho, feijão, que delicia! Tudo se gordura trans?
Dutra · Granja, CE 26/1/2009 22:12
Seja bem-vindo!
Naquele tempo ninguém se importava com estas coisas, né?
E agora a gente sofre mais.
Grata por tua presença e voto.
Ah Tia Malu,texto maravilhoso pra refletir.
Fiquei cá com meus botões e pensei:
Não nasci na fazenda,minha mãe batia ponto na escola e depois num banco,e eu por muito tempo achei que dinheiro nascesse em árvores.
Odiei quando descobri que não.
Foi traumatizante.
Oi Fernanda,
Será que é mal de família ? kkkkkkk . . .
Beijo
Um texto muito gostoso retratando o choque entre as duas vidas de uma personagem, um texto leve que facilmente se acha muito bom!! Parabéns!
beijos poéticos,
Caríssima Nina,
Acho que vc me salvou !!! Eu estava na torcida, 75 votos e 46m para terminar o tempo de votação. Obrigadíssimo. Ainda estou com algumas dificuldades de manejo do site, mas está indo tudo
bem.
Estou feliz! Beijo
Aquelas sacas de 60 quilos de grãos à granel já vinham com valor agregado de trabalho de terceiros, que o milho, o arroz, o feijão, o trigo, mesmo a soja, no depois, não se colhia mais de mão.
Corte rápido.
Tenho um pátio 3mx4m e estou cada dia mais orgulhoso de colher beterrabas, cenouras, pimentas dedo de moça, abobrinhas, salsinhas, cebolinhas, couves-flor, alfaces, tomates-cereja... vem aí o chuchu, o melão e a laranja... e agúo a hortinha de manhã, quando é possível e à tarde, pós pôr do sol, quase sempre.
Dou combate a lesmas com cinzas remanescentes de antigos churrascos (tomar cuidado com o sal no plantio recente), ou tur=iro na mã mesmo e as faço passear por outras plagas, deixo algum capim crescer e podo para forrar os buracos que faço para depositar os restos de comida, o que de orgânico sobra nas lidas da cozinha.
Mais que terapia, comer um tomate, legumes e verduras plantados por ti mesmo, até em vaso, é uma glória... dos deuses.
Tem ainda um acabateiro, que esse ano deve dar umas duzentas frutas.
Sempre me pergunto porque os prefeitos que se gabam de arborizar suas cidades não plantam hortas públicas que sirvam para alimentar as pessoas.
Salve, Maria Lúcia!
Me encanto com teus escritos.
Beijos e
Abraço Pantaneiro.
Adroaldo, uma pena eu morar tão longe de ti, senão ia me convidar
para conhecer tua horta e toda esta maravilha que vc me conta. Como se vê tudo nesta vida pode brotar, crescer e alimentar desde a horta e até o coração. Amei tua presença, volte sempre.
Abraço
Rangel,
A recíproca é verdadeiramente verdadeira.
Beijo
Rangel, só veio tua foto. Cadê teus elogios tão bons de receber...rsrsrs. Um grande beijo amigo.
Maravilha de texto! A minha imaginação voou até a nossa cidadezinha pacata mas cheia de fantasias, onde podíamos comer frutas do pomar, brincar à noite, na praça e tomar chimarrão na frente da casa, sentadas nas escadas ou em cadeiras colocadas na frente da porta.
Eu também não tinha a menor idéia de onde vinha o dinheiro e só fui aprender muitos anos depois, quando tive que trabalhar. Quando casei, minha mãe falou ao meu marido: "tome cuidado, porque a Tania não é muito boa em matemática"...
Guria, estou amando ler o que você escreve.
Um beijão
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