Cerveja gelada e cigarros, uma amiga ruiva e bem disposta, sexta-feira, uma mesa de bar. Érico sentia-se bem o bastante, não havia do quê reclamar. Virava-se para os lados rapidamente para sorver o momento à sua volta, e então voltava a debruçar-se na conversa que não interessava. Trocava palavras sem pensar nelas, concentrava-se nos olhos de Selma, nos seios de Selma, virava os olhos para longe do vazio. Tragou seu cigarro, passou a mão no cabelo eriçado e pediu a conta.
- "vamos para outro lugar?"
- "bora!".
Começou mais uma a noite.
Deslizaram um pouco pela cidade, enquanto deixavam aumentar a vontade Depois, cheios de vontade pararam sob um bloco qualquer da quadra de Selma para se conhecerem melhor. Érico fingia, evidentemente, estar interessado no que Selma tinha a dizer, e esta retribuÃa o fingimento. Foi com alÃvio que resolveram parar com a encenação e se atracaram, alguns minutos depois. Érico abria com urgência os botões da blusa de Selma. Selma enfiava, aflita, a mão dentro da calça de Érico. Havia uma urgência naquilo, de como se não houvesse tempo a perder. Era como se matassem uma fome, ou tentassem estancar um sangramento. Era como se fosse um remédio, um placebo, para uma dor antiga. E então terminou sem deixar vestÃgios. Selma foi para sua casa, após se despedir e se certificar de ouvir com um sorriso a promessa de telefonemas de Érico. É claro que trocariam telefonemas assim que a fome aumentasse. Ou talvez não. E assim terminou mais uma noite.
Érico chegou em casa pouco antes do nascer do sol e jogou o casaco sobre a primeira cadeira de seu apartamento, como fazia sempre. Abriu a geladeira e pegou a última cerveja. Com um pouco de sorte não estaria choca - pensou. Sentou-se à varanda e acendeu um cigarro, olhando fixamente para o ponto de ônibus. Aos poucos o céu começava a clarear, encontrando Érico, estatuesco, sentado à varanda olhando para aquele ponto de ônibus. Não sorria, nem sequer pensava em Selma, ou em LuÃza, ou em cerveja, ou em qualquer outra coisa. Acendia um cigarro no outro, aflito, e apenas ficava ali, com os primeiros raios de sol refletindo nas vidraças.
E foi então que ela veio. Delgada e sonolenta, cruzando a rua. Seus passos no asfalto eram sem vontade. Usava um casaco alaranjado sobre o uniforme de colégio, como um velho amigo sonolento. Érico debruçou-se na varanda e olhou, tentando conter, como sempre, as lágrimas. Lá estava Elisa, e eles não estavam mais juntos há muito tempo. Algumas vezes ela olhava para cima e desviava o olhar. Algumas vezes ele se sentia estúpido e ia embora antes que ela chegasse ao ponto de ônibus. Algumas vezes, como esta, ele apenas ficava ali. Certa vez ele ficou quase um mês sem aparecer naquela varanda para ver aquela menina, aquela que amara que nem um cachorro louco, cruzar a rua e pegar aquele ônibus. Foi a única vez que ela ligou dizendo que tinha saudades dele. Encontraram-se e beijaram-se como nos velhos tempos, e então nada deu certo, como nos velhos tempos. Em dor renovada se separaram. Desde então Érico não mais a procurou, nem ela o fez. Apenas se sentava, com a devoção de um viciado naquela varanda, e olhava ela chegar, fingir que não o via, e ir embora. Era o pior de seus vÃcios. Era o seu doce veneno, e o matava um pouco dia a dia.
Este era, contudo, o único momento em que Érico sentia-se realmente vivo.
não é, definitivamente, um de meus melhores contos...
mas é real, muito real...
merece, quem sabe, um pouco de atenção...
Noto que seus contos têm um certo "efeito placebo", mas no bom sentido. Seus personagens não sabem se estão vivos, mas permanecem insistindo, ali no fio da navalha sensorial. Isso é bom. É bom estar vivo!
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 3/9/2006 10:58
seu comentário é muito interessante, grande Fábio. é uma nuance para a qual eu nunca havia atentado em meus contos. talvez seja um reflexo de tantas pessoas que conhecà e conheço aqui na cidade, vivendo meio sonâmbulas de festa em festa, de flog em flog... vivendo vidas de plástico por cima de suas vidas reais tantas vezes impercebidas...
é bom estar vivo, seja do jeito que se puder estar...
abraços do verde...
Realmente o texto é belo. Angustia e desespera. Hora com a fluidez precisÃvel dos acontecimentos, hora com o desfecho tão inesperado.
Parabéns! Você tem o dom de dominar as palavras.
=)
Quanto á sua frase acima:"é bom estar vivo, sejo do jeito que se puder estar..." Eu discordo. Quando não há vontade, não há porque viver. O que move o mundo e a vida não é o amor, mas a vontade - seja ela bela ou não!
Obrigado pelos elogios Hana!
Que bom que gostou. :)
E eu concordo com sua preleção sobre a vontade, mas mesmo sem vontade a vida tem suas delÃcias. É claro que, para aqueles que sabem o valor dos sentimentos e da vontade, a vida sem vontade... e sem sentimentos... não vale a pena...
mas é tudo uma questão de referencial. e não podemos nos tornar prisioneiros de nosso próprio referencial...
abraços do verde...
Xará, gostei muito, mais uma vez.
Cruel, desesperador e, acima de tudo, muito real.
Quem nunca foi Érico um dia?
Um abração!
Que bom que gostou, Xará :D
É um conto bastante querido da safra 2005...
E eu confesso... eu fui Érico por mais de um mês. Aliás, o próprio conto foi um "exorcismo" para aqueles tempos... :)
Abraços do verde, e obrigado pelos elogios.
opa.. eu falei safra 2005, né?
me enganei. ele tb é de 2004. :D
Olha aÃ, outro de você que gostei. Outro totalmente diferente dos primeiros que conheci.
também escrevo contos que exorcisam sentimentos que adoeceram por motivos vários, e não partiram, ficaram ali, contorcendo a alma, ignorando o corpo...
Não sei quem foi que disse que todo escritor é biográfico.
Mesmo que não concorde plenamente com a opinião alheia, ela tem um pouco de verdade. Você não acha?
Te abraço.
Antes de mais nada, eu fico muito feliz que tenhas gostado do conto, Dora. :)
Foi mesmo um conto-exorcismo tardio, para um sentimento que havia se transformado em algo doloroso e pouco saudável.... um Veneno, por inebriante que fosse.
Não sei se todo escritor é biográfico. Não sei se há algo que se possa afirmar sobre todos os escritores, exceto, talvez, que todos eles foram alfabetizados em alguma lÃngua (embora, nem disso eu tenha certeza quando leio uns e outros, hehehe).
Por outro lado, acho difÃcil alguém fazer algo de todo coração sem que algo de si fique impresso no que foi feito.
Abraços do Verde.
Concordo.
Vou continuar lendo o Duende Verde e descobrindo os tantos outros de você que ainda falta conhecer.
Cheirin de hortelã pro'cê
Hey Dora! Fico muito feliz que tenha se interessado em ler os outros trabalhos publicados e "descobrir os tantos outros" de mim. :D
Tenho um blog onde mantenho atualizados meus leitores sobre o que estou produzindo e publicando, e também pelo quê ando me interessando em música, fotografia e literatura...
o endereço é http://cadernodocluracao.blogspot.com/
Beijo do Verde.
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