Estes são versos de um tempo triste. Quando mesmo a alegria era pungente. Todavia, um tempo também em que acreditávamos na transformação. Na possibilidade de um novo homem. Hoje, porém, pergunto: onde o poeta que fui? Em que verso se perdeu? Em que rima se escondeu? E me calo mais triste ainda.
Em algum lugar desse país,
nas sepulturas clandestinas,
nos cemitérios afogados,
nos porões e nas baixadas,
reúnem-se em assembléia-geral,
na consciência do povo,
os desaparecidos,
os suicidas,
os atropelados,
os mortos em tiroteios.
Em algum lugar desse país,
num ossuário clandestino,
omoplatas, fêmures,
rótulas, clavículas operárias
ameaçam a segurança nacional
e, numa atmosfera póstuma de luta,
assinam com sangue um manifesto:
o óbito dos carrascos!
Em algum lugar desse país,
nas catacumbas anônimas,
nas repartições oficiais,
misturam-se nomes, números, datas, notas
de uma sinfonia de órfãos e viúvas,
como a dança maluca dos relâmpagos:
são carlos, clarisses, carolinas,
eduardos, felipes, celestinos,
abrindo no limbo a trilha das saudades.
Em algum lugar desse país,
do chão verde-amarelo, afloram braços, vaginas,
sangue, socos, órgãos estraçalhados,
cicatrizes, gritos, confissões e raízes louras,
como cabeleiras vegetais ao vento azul da pátria,
apesar dos choques, dos tiros, das ameaças e latidos,
apesar das geladeiras e dos paus-de-arara.
Em algum lugar desse país,
a dor nasce da saudade,
como um bolero ausente na vitrola,
como uma notícia que nos é negada:
onde está jorge? sônia? arlindo?
fernando não está preso!?
e ana rosa, honestino, eduardo,
marcos, capistrano, edgar?
e tantos, tantos, tantos...
onde estão todos!?
Em algum lugar desse país,
nos porões subterrâneos dos quartéis,
já não existem soldados, como legumes de farda,
vigiando os corpos ou o que restou dos corpos.
Os ossos, como confissões inúteis,
foram abandonados aos bichos da terra,
que, como pequeninas pátrias civis,
guardam carinhosamente os mortos,
com seus olhares úmidos de algas,
solidariamente presentes.
Em algum lugar desse país,
existe um outro país, obtuso e de capuz,
onde o poema não brota ou flui naturalmente:
é extraído a bala, a socos e pancadas.
Ainda assim, em algum lugar de minha pátria,
existe uma outra pátria teimosa, obstinada,
onde os padres, as viúvas, os órfãos, os poetas
e todos que sobreviveram hão de permanecer em guarda,
com as mãos em facho levantadas,
com as idéias em vôo preservadas,
e, ainda que lhes cortem os pulsos
e lhes arranquem as asas,
hão de fazer do sangue a direção
e alçar vôo na impossibilidade das asas.
Obrigado, Lioviola e Linney.
Abraços.
Lindo meu poeta Nivaldo. Além do mais é um recado muito importante. Meus sinceros aplausos e abraços.
Carlos Magno.
Belo poema, Nivaldo. Mas não entendi a introdução (vc se perguntando onde está o poeta que foi). Tenho visto belas coisas suas por aqui. Vc não foi: é.
Tenho um pouco de medo dessa idéia de que a ditadura e os anos de chumbo favoreciam a criação artística. Tenho ouvido e lido sobre isso ultimamente. Sei que não foi isso que vc disse, mas de alguma maneira, fazer-se uma pergunta assim quando vc mostra um poema antigo, escrito nessa época, com esse tema, faz a gente ligar uma coisa com outra. Estou delirando?
"Em algum lugar desse país,
num ossuário clandestino,
omoplatas, fêmures,
rótulas, clavículas operárias
ameaçam a segurança nacional"
Esse trecho em si, já é um poema tocante.
Um dos momentos mais marcantes da minha adolescência foi a tomada de consciência de que vivíamos sob uma ditadura.
Abraços
Carlos Magno, obrigado pelas palavras.
Ilhandarilha, não penso mesmo que a ditadura favoreça a criação atística. Muito pelo contrário. Na verdade, a constatação de que já fui poeta deve-se ao fato de naquele tempo, não sei por que, eu me sentia mais sensível pras dores do mundo, inclusive as dores e as doçuras do amor. Hoje, a idade e a experiência parece que roubaram um pouco do menino que fabricava sonhos no meu peito e imaginava um mundo melhor. Parece cruel, mas a realidade é que a poesia parace que me abandonou. Só espero que ela volte logo. Obrigado, também, por suas palavras de incentivo.
CCorales, o mesmo aconteceu comigo na adolescência e da raiva, do medo e da paixão fiz poesia. Poesia que hoje me pune, tirando-me a inspiração, tentando calar meu peito entorpecido pelo tempo. Mas eu resisto, insisto e talvez a qualquer hora volte a domar palavras selvagens e a sonhar o mundo, quem sabe?
Um grande abraço em todos.
Nivaldo,
Poeta és.
Eles se foram,
alguns só trocaram de lado e rumo.
poeta és.
Obrigado, Adroaldo, meu amigo. Se você insiste, vou acreditar. Um forte abraço.
E.T.: e o livro, como vão as vendas?
Então, querido leitor -rsrsrs,
As vendas vão pingando.
Pouca coisa em banca, mais pela internet pelo banner do blog
Retorno Imperfeito e mais ainda avulsa, por minhas própria iniciativa.
Ainda não decidi ter um distribuidor, nem sei se será necessário, que restam 450 de 1000 9cem destinei á distribuição para divulgação, cortesias e bibliotecas).
Amanhã inicio um ciclo de conversas para pequenos públicos que pode dar um impulso de tipo diferente.
Já iniciastes a leitura. Não esquece de comentar lá no blog quando tiveres uma impressão sobre o escrito.
Agradecido.
E não é que insista, considerado, é que tem muito remo nessa barca e não se pode puxar galé sozinho, se me entendes.
sem delongas.....É O MAXIMO TE LER!!!
suprasumo da genialidade dos melhores poetas...
voce é o meu melhor "achado".
bjssssssss;
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