no meu sonho

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Pedro de Oliveira · Brasília, DF
21/4/2010 · 3 · 2
 

no meu sonho

Tínhamos uma filha e ela era perfeita. Aparentava quatro ou cinco anos.

Parecia segura e apertava seriamente a testa sob a franja de cabelo preto escorrido – como o seu. Dependurada na minha mão. Fingia, porque é criança, saber onde estávamos indo. Seguia-nos e nós seguíamos a um velho amigo descamisado, branco feito papel, cabelos amarelo-esbranquiçados arrumados em dreadlocks. Caminhávamos em silêncio até a casa dele.

Chegamos à porta (uma placa grossa de madeira enfeitada de correntes presas a um só cadeado.) Ele dedilhava as chaves e ria, nervoso, mastigando os próprios dentes e isso notamos pelo movimento, ora arqueado e contraído, ora irregular e solto, dos ossos pontudos das suas costas.

Era uma brincadeira, soubemos logo que ele reabriu a porta, oferecendo-nos um sorriso simples de quem tinha certeza de nos haver proporcionado uma experiência inesquecível. Você foi a primeira a esmurrá-lo, arrancando sua prótese dental prateada, e levando-o ao chão dois degraus abaixo. Nos revezávamos em espancá-lo. Suávamos e bufávamos, preenchendo o corpo dele com todas as partes dos nossos e tingindo nossas roupas e rostos de vermelho escuro. Não queríamos parar. Oferecemos à Júlia o filme triste que era dissolver a carne e partes macias - como os olhos - de um homem, impulsionados apenas pela necessidade de acalmar nosso medo constante de perdê-la. Ele já era só um suco escuro quando nos voltamos para Júlia, que permanecia parada e tranquila.

Limpamos os respingos de sangue de seu rosto e a levamos até a quadra de esportes. Era uma reunião de vizinhança, uma espécie de quermesse. As pessoas entenderam o que havia acontecido quando perceberam nossas roupas coloridas, nossas expressões aliviadas e nossos corações batendo em paz. Estávamos livres e, Júlia, segura. Todos, na verdade, sentiam-se livres, absortos, livres de um fantasma, de um predador que subconscientemente cercava suas casas.

Servimo-nos de comida e bebida e nos sentamos nas escadas da arquibancada, de onde víamos Júlia correr com as outras crianças. Arnaldo ofereceu-nos o pó branco, equilibrando-o cuidadosamente no dorso da mão. Você aceitou, acenando com a cabeça e fungou ele todo de uma só vez. Fez uma cara azeda e limpou as narinas, eufórica.

Júlia corria feliz e eu alimentava meu corpo cansado. Feliz, ansioso, transitoriamente apaziguado. Mas, cansado.

Sobre a obra

Conto de um sonho triste.

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Pedro de Oliveira
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Doroni Hilgenberg
 

Sim,
um sonho triste

Mas quando o mal ronda nossa familia, temos desejos assassinos e acho que os sonhos os retratam,
mas aliviar-se com o põ? É barra pesada...
bjs

Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 20/4/2010 00:12
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Claudia Almeida
 

Claudia Almeida · Niterói, RJ 20/4/2010 11:55
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