O calor úmido do Rio de Janeiro, deixava o suor ainda mais incômodo, pregado ao corpo. Silva Sacudia a cabeça sem compreender o que acontecia naquele instante em que o seu segundo filho, Mauro, apontava o dedo para o seu rosto pronunciando palavras difÃceis em frases nervosas.
— Agora o Senhor foge da conversa, não é?
Nervoso, andava de um lado ao outro da sala da casa de Silva, à s vezes parava para fitar os olhos de seu pai, que, sem entender direito o que acontecia, já não parava mais de contar as cerâmicas do chão. “Elas estão melhores do que os tacos que estavam aqui antesâ€, pensava.
Mauro já não morava com ele e o resto da famÃlia havia alguns anos, residia em outra cidade no interior de São Paulo, tinha pouco mais de trinta anos e era o segundo de cinco irmãos, era engenheiro, uma aparência melhor do que a média de seus amigos de mesma idade possuidor de um jeito extrovertido e carinhoso. Silva continuava absorto em seu piso e não conseguia entender o que seu filho retrucava, “deve estar com algum problemaâ€, explicava a si quando Mauro aumentava os decibéis da sua fala.
Deitada na cama e com um terço na mão, rezava, num outro cômodo, Mariana, sem dar muita atenção à possÃvel discussão que ocorria em sua casa. “Ave Maria, cheia de graça...â€, repetia pela enésima vez, indiferente ao mundo em sua volta. Passava a mão pequena pelos cabelos ralos e lisos enquanto o gato de sua filha caçula arranhava preguiçosamente o lençol encardido de vários anos de lavadas no tanque de roupas velho. Buscava se concentrar irritada com os ruÃdos ao seu redor, “Pai nosso que estais no céu...â€, continuava.
A casa dos Silva ficava num bairro residencial, bairro que havia deixado de ser periferia com o aumento urbano, e, agora, fora quase todo englobado pela denominação de Zona Norte. Residiam ali, desde o primeiro aniversário de Mauro, a primeira casa própria. Festejaram um ano desta no mesmo dia do aniversário daquele.
— Eu passei a minha vida confuso, sem entender os porquês de ter dificuldades afetivas, sempre quis ter a certeza do afeto de vocês, mas quando lembro que nem nunca um abraço recebi... E, por décadas fiquei enfiado em consultórios psiquiátricos e tomando anti-drepessivos, quase virei um alcoólatra, já até tentei acabar com tudo isto, e, no momento em que quero passar toda a estória a limpo o senhor continua do mesmo jeito, indiferente aos seus filhos, se fosse um de meus primos, ou até um filho de amigo o senhor estava dando mais atenção.
Mauro estava transtornado, os seus olhos antes tão alegres e cheios de vida, apesar da depressão que sempre lhe acompanhou, aparentavam duas bolas de fogo com a expressão de raiva que passara de súbito para um ódio controlado. Silva não tinha mais como fugir e resolveu balbuciar alguma coisa.
— Você nunca gostou da gente mesmo, desde pequeno ameaçava que iria embora de casa, desde muito pequeno, e a gente ia buscá-lo na casa de seu avô que morava ao lado de nós. Eu queria saber o porque de tanta raiva de sua famÃlia.
— Você sempre repete isto, não passa de uma tentativa de jogar a responsabilidade sobre mim, mas se continuar debatendo comigo eu devo elogiá-lo e incentivá-lo. Eu queria, dentre muitas coisas contar a minha estória, sob a minha ótica e, assim, passarmos para uma discussão pacÃfica, o que acha?
— Por que mexer no passado meu filho? Sua mãe gosta muito de você, isso não basta?
— Acredito que se olharmos para o passado poderemos nos aliviar de neuroses presas no presente.
— Você e sua mania de analisar tudo à sua volta, apenas viva Mauro.
— É o que eu tento fazer. Viver... Deixar de sobreviver! Você pode me dar um pouco de seu tempo? Faria muito bem pra mim e tenho certeza que pode ajudar o senhor e a mãe.
“Ajudar a mim? A mãe dele? Filho de uma mãe egoÃsta!â€.
— OK! Mas vamos rápido que eu combinei com o seu tio Gil para irmos num bar.
Retrucou já com um certo ar de impaciência e indignação. “Quem ele pensa que é? No meu tempo um filho não questionava o seu pai, devo ter sido muito mole com ele, ah menino mimadoâ€, sentou-se em frente ao filho no jogo de sofá novo que havia comprado com o dinheiro emprestado de Mauro.
— Comece!
Cristiano Melo, 2006.
Que maravilha de conto, Cristiano! Zona norte,
já imaginei o Meier! Seu conto me fez lembrar
de algumas passagens descritas por Kafka em
"Metamorfose". Em muitas famÃlias temos um
Mauro e pais não tão "mauros".
Excelente.
Abraços.
cristiano que pai filho da p...não?
um abraço meu caro...muito bom texto.
Com um pai desse qualquer um teria motivos para ser neurótico.
bjs
Cris
sei que é ficçao[ou não]mas está cheio de pais desse tipo por aÃ
principalmente no nordeste,tem filhos que nascem,crescem e morrem sem nunca ter tido um abraço paterno ,os pais tem muitos filhos não por amor,mas para terem mais mão de obra escrava ''num futuro''
Um beijo querido
Mais um belo texto Cris,
bela ficção que em muito tem de verdadeiro em muitos dos nossos lares.
Um beijo GRANDE!
Cris,
Um belo texto. Li atentamente e
me envolvi tanto que fiquei com muita raiva do Silva,
sua impassividade e desamor.
A eterna falta de comunicação e de compreensão
entre pais e filhos.
Parabéns, amigo. Volto depois.
Beijos muitos
Você cada vez mais me deixa perplexa, amei.
Ecila Yleus · Recife, PE 4/9/2008 12:50
Muito bom teu texto. Mostra uma realidade nada incomum. Desse desamor que desatina quemtem um poco de lucidez.
Bravo!
abraços
Juscelino,
Tens razão, existem mesmo diversos Mauros e não Mauros. A intenção do conto, muito embora não goste de explicar o escrito, é retratar mesmo algumas relações comuns numa famÃlia comum...
Obrigado
abraços
Sam, meu caro,
é mesmo né? Infelizmente tão comum...
Muito obrigado pela leitura
abraços
Sônia,
as neuroses quase sempre são formadas no meio familiar, infelizmente, você tem toda razão.
Obrigado
beijo
JU,
você traz um tema um pouco diferente à baila, mas muito importante, o de se produzir filhos para se ter força de trabalho, parece impossÃvel de conceber tal ato, mas é fato, infelizmente.
Obrigado pela leitura e sensÃvel comentário
xêro
Branca,
Eu que agradeço sua leitura e comentário. Muito comum não é? nada de excepcional nisto, o que é mais doÃdo, a sociedade anda doente, necessita-se de mais afeto efetivo.
beijos
Wal,
Conhecendo você, tenho certeza que leste mesmo, e que tomou partido do texto....rs
O afeto pode muito e devemos cuidar para passarmos isto aos nossos filhos.
beijos
Ecila,
Ficaste perplexa???rs
Obrigado pela generosidade.
beijos
Zilka, isso mesmo, nada incomum.
Obrigado pela leitura e comentário
beijos
Que frieza! Como educador, Cristiano, hsitórias parecidas com essa não me parecem mais ficção. É impresionante o número de pais que delegam à escola, à igreja ou aos traficantes a educação de seus filhos. Pais que acham que ser mantenedor é sua única função. Triste, muito triste e as conseqüências, quase sempre, são trágicas.
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 4/9/2008 17:54
Cristiano,
Interessante que teu conto tem uma realidade crua:
Lembro de uma época quando minha filha adolescente ( hoje advogada) me perguntava:
--Mãe, porque o pai não gosta de mim?
e eu procurava segurar a barra, mas a verdade é que
meu ex não "sabia" demonstrar sentimento algum.
E tem muita gente assim!
bjsssssss
votando cristiano...
abraços
Acredito que se olharmos para o passado poderemos nos aliviar de neuroses presas no presente.
adoro sua maneira de esvrever e que conto maravilhoso.votado.
Cristiano Melo · BrasÃlia (DF) ·
O Agora do Ontem
Com a Imaginacáo que temos, podemos construir idéias boas e ruins sobre tudo.
A mensagem do jesus é de perdáo.
Sobre a familia temos de relevar e construir coisas boas que váo somar, para que seus membros procedam com amor e consciéncia, dando motivacáo, para sempre haver construcóes de coisas boas. Isso sempre e, no pouco que náo conseguirem a gente por amor faz perdoar.
Por incrivel que pareca isso que é o mÃnimo do certo.
Abracáo amigo.
Grande Cris. Retornando para publicar.
Abraços.
As pessoas fazem seus pequenos mundos
E esses mundos tem um sol no centro
E todos acham que são o sol.
Bela prosa Cristiano,
Parabéns por esta bela faceta de escritor
Um abraço
oie Crisss!
Como estava com saudades dos seus contos!
Muito bom Cris!!
Bem realista!!
Como vejo esses casos espalhados por aÃ... emuito próximo a mim... com os relatos dos meus alunos....
Bato nesta mesma tecla:o ser (des)humano..ainda precisa aprender a amar...E não sair por aà 'produzindo' filhos 'em série'... para depois explorá-los ou abandoná-los...ou até mesmo matá-los....pois acontece mesmo isso.
Parabéns,pelo conto reflexivo!
Um beijinho bluecarinhoso
Blue
Caro Marcos,
como educador podes realmente tentrar em contato com diversas realidades distintas, infelizmente , mesmo nessas diferenças, a desatenção é completamente comum, sociedade em plena doença emocional paradigmática. E, não se lembram que existe o ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente... Por isso passÃvel de ser enquadrado juridicamente, dependendo do caso.
Muito obrigado pelo comentário e força, como edeucador, nossas crianças precisam...
abraços.
Dô,
Sinto muito que tenha passado por isto, deve ser muito complicado explicar a uma criança a falta de atenção de um dos genitores, senão dos dois... E, explicar??? É ou não é direito da criança receber afeto para se desenvolver saudavelmente???
Obrigado pela leitura e comentário.
beijos
Marcos, Ju, Sam, Dô, WM, Claudia, Juscelino, Branca,
Obrigado pelos votos
: )
Caro Azuir,
a estória de dar a outra face há de ser examinada mais de perto...
Perdoar simplesmente, não é algo produtivo nem adequado em alguns sentidos, ao meu ver... Talvez, esta tendência a se perdoar tudo é que se tenha tanta mazela nas nossas famÃlias, pois assim, temos situações que, devido à necessidade de se perdoar, se joga para debaixo do tapete, quando se poderia conversar e pacificamente chegar a um acordo.
Mas, são apenas pontos de vista diferentes.
Agradeço a sua leitura e comentário.
Grande EG,
o umbigo como Sol....como sempre você vai com o dedo na ferida...hehehehe
Fico muito contente que tenhas gostado de meu retorno à prosa...fiquei prosa!hehehehheehhehe
Obrigado meu amigo
Abração
Blue,
Também insisto nisto... As pessoas precisariam antes, amadurecer emocionalmente antes de se ter filhos, do contrário as consequências desta inconsequência pode ultrapassar limites e levar mesmo até a morte. Como educadora que és, imagino o conflito que passas vez em quando, senão sempre, quando percebes as expressões da falta de afeto nos olhos de seus alunos...
Existem muitas relações assim; distantes, tristes e aqui muito bem retratado por vc meu querido. Parabéns. ((+_+)) beijo
Angélica T. Almstadter · Campinas, SP 6/9/2008 14:58
Julie,
com certeza este é um tema recorrente em suas sessões...Pois trata de interações tão comuns no formato failiar da nossa sociedade atual. Obrigado pela leitura.
beijos
Angélica,
fico contente que tenha gostado de minha prosa....Costumo falar que há de se ter uma revolução do afeto efetivo...que este seja um desafio!
Obrigado
beijos
Pois... eu comecei a ter contato com sua prosa agora!
A maioria do que tinha lido eram versos...
Gostei querido... embora a relação seja dificil!
abrços!
Silva é um homem sem noção de tempo nem lugar. Sem ontem nem agora vive o primário. Impulso puro sem mediação. e sua companheira é omissa. erra por isso mesmo.
BelÃssimo texto. Além de essencial para que a infância da classe média seja mais assistida pelos agentes sociais. Em geral, paÃses desenvolvidos o estado oferece programas de intervenção nas famÃlias para que as coisas não cheguem nesse ponto. Mauro poderia ter sido beneficiado.
Boa prosa, Cristiano.
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