O BILHETE PREMIADO

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"NATO" AZEVEDO · Ananindeua, PA
9/12/2019 · 0 · 0
 

O BILHETE PREMIADO

Acordou, como sempre, com a mesma expectativa, o coração palpitando mais do que bateria de escola de samba... aqueles momentos que antecediam a consulta do resultado da Loteria eram de total esperança, pensamento positivo que se esvaía pouco depois, a desilusão cobrindo qual mortalha seus mais lindos sonhos. Mas, lembrava sempre da música de Zé Rodrix... "bem antes da minha morte / eu sei que esse dia chegará"!, falando em Sorte e na teimosa ilusão que lhe alimentava a vida.
Já estava aposentado, podendo "torrar" uns trocados em apostas sem que isso sacrificasse sua vida simplória, de ler jornais pela manhã e ver TV de tarde. Felizmente vivia sozinho, já não tinha ninguém pra lhe dizer o que fazer nem onde gastar seu benefício federal conseguido a duras penas, após esperar ano e meio pela aprovação e liberação.
O idoso ía a padaria com a doce sensação de que, naquela manhã, a Sorte lhe sorriria... seria êle -- e ninguém mais, se possível -- o dono da "bolada" da Lotofácil, jogo novo na praça e, aparentemente, muito fácil. Já lá se íam ano e tanto e "seu" Felizmino só "arranhava" prêmios menores, a promessa de riqueza instantânea recusando-se a posar em seu colo. Só que nem sonhava em desistir, tinha a sensação de que "tirar a Sorte grande" estava escrito em seu Destino. Portanto, o negócio era continuar apostando ! Era um velho precavido: guardava as apostas anteriores por 3 meses, vai que o jornal (por engano) publique com êrro algum resultado... pelas regras, um bilhete antigo com a mesma aposta serviria para provar a propriedade do ganhador.
Mais uma vez na padaria, comprava sempre a mesma coisa: 3 "carecas" -- o "pão francês" ou "pão de sal" em outras regiões -- e o indefectível jornal, a emoção da espera depositando adrenalina no sangue setuagenário. "Seria hoje" ?!, martelava o cérebro senil. "Será hoje"!, carimbava a tola Esperança, a que não desiste jamais. A rotina também era igual: sentava na varanda, xícara de chá de camomila e pão quentinho e, logo depois, a conferência do resultado, evitando marcar o bilhete, o Banco recusaria qualquer aposta rasurada. Depois, vinha a comedida comemoração -- quando ganhava o dinheiro investido ou algo além disso -- ou a decepção amarga por mais um fracasso. Não foi o caso... já ficara por 1 mísero algarismo de levar pra meio milhão , só que hoje dera a "cacetada" sonhada por tanto tempo. As casas vizinhas "rodavam" à sua volta, sentia a cadeira flutuar, ficou sem saber o que fazer por largo tempo.
Conferiu e reconferiu por várias vezes, era mesmo o bilhete premiado, 300 e tantos mil reais, 2 outros "desgraçados" ganharam com êle. Ligou pro sobrinho em outra cidade, pediu-lhe que viesse receber o prêmio, a aposentadoria não lhe permitia ter outra renda. O sobrinho não contestou, o velho era "meio doido" e não saberia administrar tal fortuna, porém só iria de tarde, não podia largar o serviço naquele momento. O ancião hesitou em fazer uma cópia xerox do bilhete com o resultado, queria guardar de lembrança aquela estrondosa vitória. O bairro era perigoso -- bem sabia êle -- e se a notícia vazasse êle correria perigo. Esses bilhetes "são ao portador", qualquer "verme" pode recebê-los !
Resolveu correr o risco... a Sorte que o agraciara não iria "deixá-lo na mão" agora. Mas, para não dar chances ao azar, levou o bilhete anterior, do sorteio 1098, 5 dias antes, dia 13 de agosto, uma sexta-feira. Na papelaria o dono, que o conhecia, o interpelou:
-- "O senhor está tão pálido, está se sentindo bem" ?!
Não conseguiu responder, apenas chacoalhou a cabeça. Aquilo era péssimo, o dono da loja percebera sua emoção. Torceu que nada de ruim lhe sucedesse, todavia tomou providências: ocultou o "original" atrás de um quadro. Já passava das 11 da manhã quando bateram no portão. Abriu a "janelinha"... era o anotador da água.
-- "Haviam anotado naquele mês, dias antes"!, argumentou.
-- "Estavam fiscalizando isso"!, retrucou o rapaz.
Assim que abriu o portão a contragosto foi empurrado e levou uma "gravata", a boca tampada por mão enorme. Arrastado para a sala, com a ajuda do comparsa, não perderam tempo com conversas. Meteram saco plástico na cabeça do velho, queriam o bilhete premiado... resistiu o quanto pôde mas os 2 palitos enfiados sob as unhas das mãos o convenceram a ceder aos meliantes.
-- "Está dentro do quadro do trigal, logo atrás da porta" !
Espatifaram no chão a obra de arte... lá estava o passaporte para a vida de luxo e farra, colado ao lado do pedaço de jornal com o resultado oficial, saído naquele dia, 18 de agosto. Mal conferiram e "voaram" de bicicleta para a agência da Caixa, distante uns 4 km. O sobrinho chegaria 20 minutos depois, encontrando o portão encostado, os ladrões não queriam a morte do idoso em suas costas. Amarrado e amordaçado, o idoso não parecia abatido.
-- "Ligue pro Banco já, os miseráveis que roubaram o bilhete acabaram de sair daqui" !
O Banco foi reticente... a aposta era "ao portador", a Gerência não poderia embargar o pagamento do prêmio.
-- "Posso provar que fui roubado... basta segurar esses patifes na agência por algum tempo, já estamos chegando ! E podem chamar a polícia, quero esses 2 na cadeia" !
O velho fez questão de levar consigo antigo relógio "cuco", parado há séculos, iria mandar consertar. Separou 3 ou 4 apostas iguais, de semanas anteriores, para provar que os tais números sorteados eram palpite seu. Os espertalhões, ao vê-los, empalideceram, porém "fizeram cara de paisagem". O vovô pediu a aposta de volta.
-- "O senhor está maluco ? Essa aqui é nossa, "Noé" !
-- "Podem ficar com ela, não vale coisa alguma" !
Para espanto do gerente e dos 2 ordinários, não tinham notado que o concurso do bilhete era o de número 1098 mas o resultado no recorte de jornal era o de 1099, os "lunfas" nem se ligaram nas datas, 13 e 18, bem parecidas e "passaram batidos".
A polícia entrava na agência bancária e prendeu a dupla de "irmãos Metralha" por cárcere privado e maus tratos a idoso. Segundo a Gerência demoraria semanas para comprovar a propriedade do prêmio, apenas com apostas antigas. Não foi preciso... o idoso apresentou a "velharia" que trazia consigo: atrás do relógio de fundo escuro, oculto por fitas adesivas pretas um pequeno envelope continha o bilhete verdadeiro, recebido e depositado na conta do sobrinho, sob o trato de lhe trazer a cada mês bela soma em notas graúdas e longe das vistas do "Leão" e da autarquia que lhe concedia os benefícios. Afinal tinha direito a aposentadoria, PAGARA porela anos a fio. Ciente de que o dono da papelaria "tinha culpa no cartório", nunca mais entrou na loja.
"NATO" AZEVEDO (4/dez. 2019, 6hs)

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