MICHEL CAMINHAVA pela Avenida Rio Branco rente aos prédios de arquitetura art déco tentando se proteger do pé-d’água que desabava no Rio de Janeiro naquela tarde quente de verão. Vestia um terno cinza de linho puído sobre camisa de cambraia verde e uma gravata de listras azuis e brancas que comprara na França, combinação extravagante que só a penúria explicava. Aos 58 anos, arrastava os passos na calçada molhada, apertando contra o peito o currículo e a esperança de voltar a ser mestre Louis Michel. Acabara de sair pela enésima vez da agência de empregos onde ouvira a mesma resposta: “Desculpe, seu Michel, mas o mercado tá difícil. Ainda mais na sua idade... Volte na semana que vem, quem sabe...?” Pensou nas contas pra pagar e argumentou: “Não tem nada mesmo? Qualquer coisa serve, não importa, eu...” , mas desistiu. Desceu no elevador de porta pantográfica, agradeceu ao ascensorista e ganhou a Sete de Setembro aniquilado. Na esquina com Primeiro de Março, entrou num boteco, pediu uma dose de 51 e tomou num gole, sentindo o líquido queimar a garganta e aquecer lentamente o corpo e a alma. Cuspiu de lado e se dirigiu à Presidente Vargas com um fio de saliva equilibrando-se entre o canto da boca e a gravata. Cruzou a avenida, sentou-se num banco da Praça Pio X e ficou ali com os desocupados, acompanhando com tristeza o movimento dos carros, das pessoas. Observou o bando de meninos de rua cheirando cola sob as marquises dos prédios que ladeiam a Candelária, cujos vitrais filtravam a tarde e um piano que entoava Jesus, Alegria dos Homens. Lembrou-se de que era o último dia do ano. Olhou para o relógio da Central e viu que já era quase noite e a chuva cessara. “Feliz ano-novo!”, gritaram da janela de um escritório arremessando papéis picados que no lusco-fusco confundiam-se com os pombos que revoavam dos parapeitos e da cúpula da igreja. Olhou um mendigo bêbado de fome e não soube dizer o que o separava daquele homem.
LEMBROU-SE DA VIAGEM que fez a Paris no réveillon de 2001 a convite da Aliança Francesa como prêmio por seus 30 anos de dedicação exclusiva – entrara aos 24 anos e, até um ano atrás, quando foi dispensado, era muito respeitado. Fora uma viagem memorável aquela à França. Hospedara-se no segundo andar do Sofitel Centre Paris La Défense, um hotel confortável a poucos minutos dos Jardins du Champs Élysée e da Place de l'Etoile e de cuja janela viam-se as famosas luzes de Paris. Estava feliz pela viagem e pelo reconhecimento quando, à meia-noite, lembra-se bem, chegou à janela para saudar o ano com um legítimo Moët & Chandon: “Vive la France!”, exclamou provocando uma revoada de pombos brancos que se protegiam do frio europeu aninhados no calor dos aparelhos de ar-condicionado. Aguçou os olhos e o olfato para acompanhar o vôo das aves e o cheiro adocicado de maçã verde do Moët & Chandon que se evolavam no céu iluminado de Paris: “Feliz ano-novo!”, disse para si mesmo, alegre e emocionado.
Estava radiante. E um fato inusitado marcou para sempre aquele dia em sua memória: o rufar de asas dos pombos e a explosão dos fogos e champagnes que saudavam o novo ano lentamente fundiram-se com gritos e estampidos que subiam da rua, trazendo para sua pequena festa pessoal imagens de uma Paris que ele não conhecia. Da janela do quarto viu um bando de meninos e meninas de rua gritando, quebrando e incendiando o centro da capital francesa em pleno réveillon, numa explosão de horror e violência.
CONTINUA...
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Show!
Coisa de mestre mesmo! Narrativa contudente, vi tudo acontecer na minha frente.
Maravilhado com sua escrita,fiquei triste porque o personagem MIchel é muito verdadeiro.(é um paradoxo né?)
Parabens,amigo!
saudações
Obrigado, Arlindo.
De fato, Michel é uma representação do paradoxo educacional brasileiro. A inspiração do conto foi o brutal assassinato dos meninos de rua na Candelária, ocorrido há algum tempo por aqui, e a revolta dos filhos de imigrantes que sacudiu Paris há dois anos. Não sei porque vi analogia entre os fatos... Um abração, amigo.
Pego as palavras do Arlindo: "Coisa de mestre!"
adorei!
Obrigado, Vitória, mas é pura delicadeza do Arlindo. Mestre é ele, com sua literatura transbordante, pantaneira, manoelina. E você com sua escrita vital, também feita de sutilezas e delicadezas, como o belo e poético "O Balanço do Tempo". Bjs.
Nivaldo Lemos · Rio de Janeiro, RJ 9/2/2007 12:18Para comentar é preciso estar logado no site. Faa primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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