As marcas deixadas na terra fofa, quando de seu caminhar, eram a prova inequÃvoca dos pés que tinha fincados ao chão. Porém, como levitasse meio centÃmetro acima dos sulcos abertos por suas pegadas, deslizava pela vida com graça e sutileza, pé ante pé, sem tocar o solo e ver-se presa, como naturalmente ocorre, à concretude gravitacional que lhe permitia os passos. O chão onde pisava não representava mais que uma poesia inacabada na qual transcrevia seu rastro, sem que, no entanto, fizesse pesar sobre ele o peso de sua própria existência.
Contudo, a despeito da leveza com que evoluÃa em sua trajetória, eram poucos os que ignoravam a vitalidade e força dos seus passos de menina, que passeava pela vida não porque dela fez sua ilusão, mas porque era a própria vida, com seu volume e intensidade desmedidos, quem se obrigava, resignada, a passear no infinito de seu universo particular. De fato, ao observador externo, era nÃtida a potência de seu espÃrito, tão inquebrantável que, perseguida uma meta, fosse qual fosse, mesmo entre montanhas e arranha-céus, nenhum cenário era capaz de lhe subtrair o horizonte. Como irradiasse luz própria, penetrava por entre brechas e tomava todos os espaços no ambiente à sua volta.
Entre a aridez dissimulada do devaneio e a torrente caótica da realidade, mediava o mundo como fosse dele a única guardiã. Trazia consigo, em virtude disso, o diapasão de sua alma à s mãos, exposto para quem e o que quer que fosse, fosse o caso, muito comum, de encontrar na vida nota desafinada, a ecoar e ecoar na singular acústica de seu mundo sensÃvel. Quando isso acontecia, deitava o mundo em seu colo e cantava para si um canção de ninar, e assim permanecia, com seu doce canto, até se fingir tomada pelo sono. Então o mundo dormia.
Insone, do coração irrequieto que abrigava ao peito, pulsante de emoções incontroláveis, fez-se escrava e, sem saber, entregue aos súbitos proclames de seu sentimentalismo autoritário, dançava a valsa da vida sob o ritmo cardÃaco de suas batidas, executando com perfeição a coreografia da espontaneidade e do amor. Era plena, infinita, expansiva: ela viva, ela vida.
De pétala e espinho era ela, a menina. De folha e caule era ela, a mulher. Mas como flor, então, vivia o dilema de ver-se enraizada ao chão enquanto mirarava, perpetuamente, o firmamento que lhe permitia o sol de seu vigor.
Dos frutos que aguardava com ansiedade, por sua vez, dependia mais que o brilho e calor de uma existência ensolarada. E ainda que não soubesse de inÃcio, como normalmente acontece, aprendeu por si mesma que o florescimento reiterado da vida implica, impreterivelmente, também os cansativos dias de chuva e todo o cinza de sua explosão. Cada gota uma lágrima e cada lágrima a esperança de uma nova fertilização.
Como se dos olhos só se soubesse o close, e para além de ocular fosse ele mesmo todo o globo terrestre, viu-se, naquela Ãris de sol, o nublar do tempo e o correr das lágrimas, derramadas sobre o colo da mulher que tanto se acostumara à s tempestades de sua nova fase. Viu-se, nos olhos da menina que chorava o mundo, um mundo choroso e repleto de nuvens, pouco convidativo, ansioso por calor. Cansada pelo pranto que emitia e que representava para ela mais um desafio a si mesma e menos uma lamentação, finalmente cedeu ao merecido sono.
Na noite de suas pálpebras cerradas, contudo, desligou-se da paisagem que se transformava ao redor do pequeno corpo adormecido. Porém, quando acordasse novamente, a menina saberia ao certo as razões do arco-Ãris que pairava sobre ela. Só então, ao colher dos frutos no seu recente pomar, ela viria a compreender e agradecer pelo sol e a chuva, que fazem da vida, em concomitância, uma experiência tão intempestiva quanto fértil, a brindar festiva seu novo desabrochar
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