O lado oeste da noite
Como dizia uma poetisa, “o passado é uma estranha criaturaâ€. Claro que é. Creio que os fósseis dessa criatura são ecos para sempre, assim como as ondas de rádio que vagam por todos os rincões do Universo. Minha condição humana me fascina, pois conheço a fronteira de minha existência e ignoro porque estou neste mundo. Hoje uso calcinha de renda nhanduti, mas já fui fera primitiva, cuja ignorância fazia brotar flor. Isso foi em 1977, quando cheguei por aqui. Eu era um rapaz magro, erótico, cujo conhecimento em filosofia chegava aos deslimite da idiotice por não querer ser mais idiota que os outros. Foi um bom tempo. Naquela época eu bebia cervejas e ouvia óperas.
Foi então que conheci Mimi. Decorei cada canto e cada acorde, La Bohème foi decisiva para minha transfiguração. Notei que a natureza fazia experimentos com desmanches e procurava a simetria matemática nas coisas. Eu, que não tinha uma prece para rezar, nem um canto além daqueles becos de Corumbá, resolvi seguir os passos do Cosmos. Ouvi seus pulsares, vi desvões na massa escura, paredões de galáxias, estrelas, mundos e átomos. Percebi que tudo isso seguia em linha reta, igual à conjectura de Poincaré.
Pela janela da pensão onde eu morava, esticava o olhar sobre o rio que, como um espelho, refletia gaivotas, nuvens, a lua e as estrelas em noites escuras. Éramos criaturas que viviam ao lado oeste de algum lugar, sitiadas pela melancolia, pelos camalotes errantes, barcos, telhados e becos cheirando a urina e peixe. A noite era uma janela aberta e servia como moldura para os loucos e bêbados. Eu tinha a certidão de homem adolescente e sonhos de quimeras.
Queria ser uma mulher no sentido mais profundo da palavra. Não era para incorporar, era para compreender. Gostei de ser um menino e cheirar fendas de moças com fiapos de manga – foi uma teoria e uma proeza solitária. Mas, em meio à trama do espaço e do tempo fui, aos poucos, me moldando a Quimera, cujo corpo me deixava em brasa de desejo ante ao espelho. Nas somas de tudo, o resultado era uma bela conjectura que me ampliou cientificamente para o nada. Mesmo assim, decidi que o Universo era mulher. Vesti saias coloridas, coxas delineadas, curvas, batons e gestos, eu era uma mulher perfumada.
Quimera tinha vestÃgios de homem, mas era bela e de coração sem lei e comportamento onde homens e mulheres vadiavam. Era artificial e, mesmo assim, fui abençoada pelo amor de Agosto, um homem platônico e verdadeiro – desapareceu no Rio Paraguai.
Das vilezas do homem herdei todas. Como mulher, cheguei ao limiar de uma evolução absurda e verdadeira.
Hoje, o dia envelhece em meus pincéis. Pinto quadros para meu sustento e as nuvens são ponteiros de um relógio invisÃvel em minhas telas. Nem as moscas me iluminam mais, o tempo envelheceu até o horizonte do rio. Tenho nudofobia e olhos pagãos sobre os corpos perfeitos das moças que passam pelas ruas.
Quando a noite vem nascendo, sinto uma melancolia de trem, ligo o rádio e ainda me recordo de Mimi. As gaivotas desaparecem, embebedo-me com licor de guavira e canto...
“Sì. Mi chiamano Mimì,
ma il mio nome è Lucia.
La storia mia è breve.
A tela o a seta
ricamo in casa e fuori...
Son tranquilla e lieta
ed è mio svago
far gigli e rose.
Mi piaccion quelle cose
che han sì dolce malìa,
che parlano d'amor, di primavere,
di sogni e di chimere,
quelle cose che han nome poesia...
Lei m'intende?â€
Fim
PS. VEJA ILUSTRAÇÃO/CONTO
Quem se interessar
Quem quiser ouvir a trilha terá que procurar "“Sì. Mi chiamano Mimì" (trecho da ópera Lá bohéme de Puccini). Não foi possivel postar aqui porque somente a ópera é domÃnio público. A interpretação é de Maria Callas -- pode ter problemas de direito.
Apesar que Callas tb. já foi...
Tá aà uma sugestão!
saudações
Musica
"Si mi chiamamo Mimi" é a música que Quimera gostava.Mas a canção da história é esta.
af.
http://www.overmundo.com.br/banco/o-lado-oeste-da-noite-a-cancao-geraldo-espindola
arlindo fernandez · Campo Grande, MS 27/10/2006 12:28ê Arlindo esse conto, ou romance? quando sai? cara, é muito bom esse seu texto...
Balbino · Cuiabá, MT 1/11/2006 19:06
Amigo Balbino!
Vc não acha que seria melhor lançar um livro de contos primeiro ... Quer ser meu editor?
Saudações.
Lindo, introspectivo, confessional, arrebatador! Que venham os editores!
cris gonzalez · Rio de Janeiro, RJ 30/11/2006 14:28
Cris,
muito obrigado pela força!
saudações pantaneiras.
Você é muito bom, Arlindo. Parabéns.
Carlos Magno.
Salve Magno!
Fico imensamente agradecido e feliz por vc ter gostado de todos os meus trabalhos - tenho notado suas visitas no banco de cultura.
Em artes eletrônicas tenho bastante coisas... (acho que vc vai gostar. Serve pra "Papel de parede"...)
Saudações pantaneiras
af
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