O poeta da casa do fim da rua

Sinésio Dioliveira
1
Cida Almeida · Goiânia, GO
18/6/2009 · 7 · 6
 

Foi por aí

Numa manhã de fogo

Na véspera de um precipício

Endemoniado de palavras

O poeta da casa do fim da rua


Foi por aí

Diz a velha surda

Foi por aí

Repete o olhar da moça muda

Sem tino

Doido varrido com seu cortejo de línguas


Foi por aí

Enrabichado de palavra nova

E ninguém estranhou ao vê-lo dançar na beira do rio

Tangendo um comboio de metáforas

Lavadeiras distraídas dizem que atravessou a nado

(Os sete mares das sete vidas dos sete gatos)

Meninos cobertos de crepúsculo juram que se espatifou nas pedras

E depois boiou enluarado no círculo crescente das águas

Loucos balbuciam que ele subiu aos céus num rosário de estrelas


E colho vestígios

(Carruagens de fogo, cavalos de Netuno, submarinos impossíveis, fiapos de noite na gola da camisa, respingos de eterna chuva, uma ponta de estrela encravada na sola do sapato, uma trilha de serragem, um rio seco bebendo o mar, um anjo falador, um menino fazendo piruetas na lona da aurora e visões do pássaro e da manhã na ciranda de nuvem)


Flores maliciosas insinuam que ele esteve ali enredando primaveras

E que seguiu encantado pela fresta da noite com um balde

Cheio de versos para perfumar de poesia as madrugadas

E apressada vem assoviando a ventania de outono: não vi, não vi, não vi

(Ouço a cantiga das folhas da bananeira onde um sabiá de brisa desata as pontas do infinito)


E o poeta da casa do fim da rua continua claro enigma nascente do mistério.

Sobre a obra

Poema para Gabriel Nascente, o mais produtivo poeta de Goiás (53 livros publicados, desde a estréia aos 16 anos, em 1966). Conheci Gabriel aos vinte e poucos anos, mas (estranhamente!) só fui lê-lo agora, depois dos 40. As impressões de leitura são muito fortes, dessas que só aqueles que manejam bem o seu instrumental de "luzir palavras" são capazes de provocar no outro, para o bem ou para o mal. É impressionante como conversas banais, às vezes, têm o poder de produzir imagens definitivas. Nos últimos meses, volta e meia um amigo, com quem converso muito sobre poesia, vinha me falando sobre Nascente. Outro dia comentou que ele havia comprado uma casa numa cidadezinha do interior, no final da rua. Manifestei o desejo de ler Gabriel e ele me trouxe livros. E a poesia de Gabriel me inundou, como um rio que transborda, deixando marcas definitivas.

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informações

Autoria
Cida Almeida
Ficha técnica
Poema feito no dia 20 de maio de 2009, depois de uma longa estiagem que beirava a deserto no território da poesia.
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mochiaro
 

Cida Almeida
Como dizes, após uma longa estiagem os versos germinam desse solo fértil que vem dentro de você.
Sua poesia em homenagem a quem tanto lhe inspirou envolve a quem ler de uma pureza d'alma.
"um rio seco bebendo o mar" define tudo num todo.
Um beijo

mochiaro · Rio de Janeiro, RJ 16/6/2009 20:27
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Cida Almeida
 

Mochiaro, muito obrigada pela leitura e por devolver o olhar.

Grande abraço.

Cida Almeida · Goiânia, GO 19/6/2009 11:07
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Adroaldo Bauer
 

Isso de ler e reler é reviver [é bem isso], muito querida Cida.
Em boa hora a poesia te revolve, visto que escribas quaisquer em amontoados virão, verás, veremos, os que sobrevivermos.
Recordo, que estou relendo, para aprender mais e de novo:
Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Isso nos diz Riobaldo, em Grande Sertão : Veredas, a pp 236, da nona edição, pela verve de Guimarães Rosa, que achei por bem visitar-te bem acompanhado, de tanto que bem nos fazes.

Adroaldo Bauer · Porto Alegre, RS 19/6/2009 15:19
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Cida Almeida
 

Adroaldo, querido, bom você aparecer aqui e com tão iluminada e inspiradora (sempre) companhia. É um privilégio andar às voltas com o eterno Rosa, um descanso na loucura nossa de cada dia. Também agradeço esse revolver da poesia, que chega em boa hora, para um pouco de descanso da loucura indizível que é viver.
Beijo grande!

Cida Almeida · Goiânia, GO 22/6/2009 09:49
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José Carlos Brandão
 

Ótimo poema. Inesperadamente encontro um poema diferente, com qualidade. Parabéns. Puxa!

José Carlos Brandão · Bauru, SP 14/7/2009 12:10
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Renato Torres
 

cida,

há tanto com saudades de te ler, chego aqui. o que ouço/vejo são urdimentos paridos à distância de gestação, com envergadura de temporais - esses fenômenos naturais que dizem tanto do tempo quanto da água furiosa. é preciso lembrar que nuvens gestam, rios gestam, árvores gestam, e tudo o mais no mundo que saiba a feminilidades arquetípicas. sempre me impressionei com a força de rupturas e erupções, e aqui trazes a explosão íntima, delicadíssima, de quem é tocado pela palavra - e que importa se é a palavra de um outro poeta, ou se as palavras que escreves são dedicadas a um poeta?... palavras que luzem serão sempre a poesia primeira.

obrigado por este prazer de reconhecer-me,

beijo,

r

ps: e o flor da pedra, como anda?

Renato Torres · Belém, PA 17/9/2009 13:03
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