Durante o século XX o passado morreu e o futuro, com suas promessas, se tornou uma obsessão. O mercado de consumo exige tecnologia. A tecnologia por sua vez flerta sempre com o futuro, e o futuro, antes de qualquer coisa, é filho da esperança. Pensar que o amanhã pode ser melhor, que faça a nossa vida valer a pena, é uma ótima maneira de escoar mercadoria. Talvez por isso, o século XX tenha sido o século da vanguarda. A vanguarda aposta no futuro e na esperança de que alguma revolução vai acontecer para que o dia depois de amanhã possa ser radicalmente diferente do dia de ontem. Por isso, se você pensar em um tipo de música que mais sintetize o espÃrito do século XX, essa música vai ser o Jazz. Nenhum grande músico de Jazz se contentaria em ser, simplesmente, o cavalo de um ancestral morto. Miles Davis não quer repetir o trompete de Dizzy Gilespie, que, por sua vez, profana sem pudor o Swing de Armstrong. O Sax de Charlie Parker não se reduz nem a tradição de Coleman Hawkins nem a de Lester Young. O Jazz expandiu as possibilidades musicais do século XX, saltando de uma base tribal africana, incorporando os metais da era industrial européia e adequando ao nÃvel do Pop, a experiências sonoras das vanguardas russas e alemães. O mote do século XX é o de se criar uma música nova para um futuro que ainda não chegou. Sei que é cedo pensar qual será o mote da música do século XXI. Mas me caiu nas mãos uma música de um sujeito chamado Ritchie Blackmore (Ex Deep Purple, mas que parece uma espécie de Antônio Nóbrega com cara de Celta). O CD é de 1997 e a capa parece fazer referencia a algum RPG de fantasia, no bom e velho estilo do simbolismo do fim do século XIX, com alguma pitada de Tolkien e C. S. Lewis. A primeira impressão que tive ao ver a capa foi: “com certeza é uma banda de metal melódicoâ€. Para quem não sabe metal melódico é uma espécie de tentativa do Heavy Metal sair do armário e assumir de vez que é música neo-clássica enrustida, tocada com guitarras distorcidas e vozes cavernosas. Não teria nunca comprado o CD se não tivesse visto que, na música “Play, Minstrel Play†o Ian Anderson tocava flauta como convidado especial. Sabe... hoje o futuro não é lá grande coisa. O que podemos esperar do amanhã? Vivemos uma época sombria o suficiente para pensarmos que não há um futuro para mais duas ou três gerações. Essa é uma sensação que mata qualquer vanguarda e que faz secar as expectativas de revolução. Sem revolução, a sensação de que “as condições de um presente inquietante†vão se perpetuar produz a impressão de que algo se perdeu. De que alguma linha se partiu em algum canto escondido do tempo e que precisamos voltar, para ver o que deu errado. A tal faixa 04 do CD do Antônio Nóbrega Celta não era metal melódico. Era uma versão de uma música anônima do século XIII que eu ouvia quando criança em um disco verde do meu pai. Parte de fragmentos anônimos do Romance de Fauvel, do lamento de Tristão e Isolda e do Manuscrito de Bambergue; retirados de fontes anônimas que remontam à época das cruzadas cristãs. Tudo isso tocado com instrumentos como rabeca, viela tenor a arco e flauta transversal antiga. A flauta do Ian Anderson não é uma flauta antiga e não faz jus ao caráter marcial da versão mais fiel ao original medieval. Mas eles estão lá. Os mortos aparecem naquele som. A poeira dos antigos. O eco dos fantasmas do tempo. Os sinais genéticos de tradições arcaicas e linhagens ancestrais que se perpetuam em formas musicais que atravessam os séculos. Talvez, a música do século XXI pague esse débito porque, em uma época na qual o futuro não parece promissor, o passado acaba se tornando o espelho no qual o presente tenta se enxergar.
Vou voltar pra ler-te, lê-lo e comentar, me apressei em votar. andre
Andre Pessego · São Paulo, SP 17/6/2007 07:32
Gostei muito dese seu texto, no qual aprendi coisas novas para mim.
Vou reler e sugiro que republique (e talvez continue no tema, o que acha?).
Obrigada
beijos
Obrigado pelo comentário, Saramar.
este texto foi publicado também no O Jornal de Hoje,
um perÃodico de Natal.
Estou trabalhando uma série sobre música.
discografia básica.
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