Fui cuidar de velhos em um asilo por interesse, se isso é possÃvel. Alguns passaram a me ver como um homem de bom coração, quando eu tinha o coração mais sujo e desgostoso. O senhor Alceu, um dos velhos, viu logo de que eu me tratava. “Você é um frustrado que nunca se resolveu no amorâ€, disse na segunda troca de fraldas que eu lhe fiz. Sim, respondi, mas disse que ele devia ser como eu. E que só assim ele poderia saber do meu problema: tendo tido o mesmo infortúnio, o mesmo desacerto de lupas desajustadas que não conseguem concentrar raios de luz. “Concordo, concordoâ€, concordou ele. Saà para limpar a pelanca da estrábica dona Eva com panos úmidos. Mais tarde, antes de sair, Alceu me chamou. Prometeu que no dia seguinte me contaria sua história.
O dia seguinte chegou. Primeiro, tive que dar remédio ao velho Cônego Tobias, batizado como a rua do bairro do Méier. Depois, uma senhora obesa e simpática ao infinito, Eglantina, precisou de ajuda para levantar. Ex-fã de cantoras de rádio; confessou que procurou uma vaga de vedete em tempos idos. Depois, seu Fúlvio e dona Extrema, abandonados pelos filhos, trocaram acusações com rispidez; precisei intervir. O senhor Alceu, impaciente, veio me puxar pela mão. “Quero lhe contar porque somos iguaisâ€, apressou-se a dizer.
Sentamos no jardim, ou nos fundos do casarão que era chamado de jardim, em bancos de cimento. No inÃcio dos anos 30, ele viu quando Getúlio Vargas tomou o poder, e gritou para Washington Luiz que já ia tarde. O grito chamou a atenção de uma jovem a seu lado. Era Adélia. Loura de média estatura, cabelos encaracolados, vestido discreto e sorriso barroco. Achando que ela nada entendia de polÃtica, Alceu levou a moça para um café, onde iniciaram o namoro que até então pesava sobre os ombros e as tardes lentas do seu fim de vida. Durou um ano, o ano feliz, como ele dizia. Depois, sem justificar, Adélia o abandonou. Pedi, com delicadeza, para continuar sua narrativa em outra hora. Voltei para o salão principal, dona Auxiliadora me esperava para uma partida de damas. Antes de ir, Alceu me contou o que disse Adélia em seu último encontro. “Amar-te-ei para sempre se te deixar agoraâ€. Com calafrios, me despedi.
Sem conseguir me desfazer do incômodo trazido pela imagem da Adélia loura e barroca, voltei ao serviço na manhã seguinte. Dava papa ao ex-mendigo e nonagenário José. Ao lado, enquanto remexia uma barba hirsuta, seu Vidigal tinha uma crise de flatulência, alheio a censuras. O senhor Alceu me chamou. Contou que durante aquele ano Adélia o maltratou. Numa confeitaria, certa vez, ela despejou de propósito um copo de malte e ralhou com ele em voz alta, obrigando-o ao vexame. Noutra feita, deu-lhe um empurrão até pisar na sarjeta e sujar os sapatos. Um dia, ela encontrou um amigo esportista e cantor de trovas e abraçou-o com animação indecorosa em plena Rua da Carioca, à vista de Alceu e de todos. Mas Alceu continuou amando, até amando mais, porque a cada travessura que Adélia fazia contra ele, abria o sorriso barroco com intensidade sempre maior. Pedi, já sem delicadeza, que Alceu parasse a história, e fui vomitar.
Tive de faltar por dois dias, sem ânimo de me levantar da cama, e retomei o voluntariado com cautela. Dona Clara, com sua fama de rica, me pediu que engraxasse seus panos de enxugar copos. Seu Mineiro, o único centenário do asilo, me pediu para contar até trezentos em voz alta, pois estava compondo uma sonata e não queria se esquecer. Dona Elúsia me entregou uma bandeja vazia, advertindo que eu não comesse demais, pois não comer demais fazia mal à saúde. Ciente do inevitável, fui até o senhor Alceu, que já me esperava com um sorriso mordaz. Naquele dia ele contou de como Adélia se recusava a confirmar se lhe queria bem. Depois de muitas humilhações, mas seduzido pelo sorriso barroco da mulher, Alceu transformava o ressentimento em certeza de que era amado. Sua certeza era tanta que, alegre, só aguardava uma confirmação verbal. Com ela, poderia ter-lhe proposto o matrimônio e não estaria ali agora. Adélia, porém, sempre recusou confirmar. Das maneiras mais bestas. Mudava de assunto para qualquer frivolidade, iniciava crises de choro sem razão, sacudia seu corpo como quem sai da água. O amor de Adélia só lhe foi dito quando ela o deixou. Desta vez não agüentei e vomitei em cima do senhor Alceu, que ficou todo melado e fedido. Vomitei tudo o que tinha por dentro, e caà curvado diante de sua cadeira de roda. Foi um custo me levantar, trazer panos, limpá-lo e continuar no trabalho. Doutor Vespasiano cismou que eu sabia quem eram seus amigos de infância; ele os havia esquecido. Dona Dora, que dizia ver espÃritos, me apontou “um grande buraco†na parede de um lugar onde não havia parede. E dona Lis pediu telefones assados para o jantar. Parcialmente recuperado, fui ao senhor Alceu me desculpar.
Ele disse que me entendia. Respondi que isso era impossÃvel. “Você é jovem, mas é frustrado como eu, carreguei o sorriso barroco de Adélia por toda a vida, é o fantasma que levo para a tumbaâ€. Contive minha respiração e, com cautela, contei que também tive uma namorada que me arrebatou. Passei com ela um ano de sofrimento e paixão. Maus tratos, problemas insolúveis, situações que recomeçavam porque se concluÃam, todo o repertório de ruindades que minha ex-namorada tinha, usou contra mim. Como Alceu, eu tudo desculpava por causa de seu sorriso. Que não era um sorriso, era um movimento de nuvem cósmica. Segundos antes de ela me anunciar nossa separação, eu fiz o elogio que considerei definitivo: disse que seu sorriso era barroco, e que isso fazia dela a mulher de mais graça em toda a vida, ou seja, neste e em outros mundos, nesta e em outras épocas. Ela me respondeu com as seguintes palavras: “Se eu te deixar agora, vou te amar para sempreâ€. Ela, que nunca disse que me amava. E saiu andando. Tentei encontrá-la por todos os meios, mas Adélia sumiu para sempre.
“Me confirme apenas o sobrenome, por favor, já sei que sua Adélia é loura de média estatura, cabelos encaracolados e se veste com discriçãoâ€, disse o senhor Alceu. Adélia Mattos Brandão, eu respondi. “É ela! Há! Eu sabia, é ela!â€. E o senhor Alceu foi-se com sua cadeira de rodas, batendo palmas pelo salão quando não girava as rodas com vigor. Para dentro do meu próprio cérebro, uma voz retumbava o impossÃvel daquela situação. Senti horror e perturbação, náusea, resfriamentos, dormências. Trêmulo, ensaiei cair, mas antes deitei na cama do senhor Alceu e dormi.
Seu conto é excepcionalmente bom. Entre outras caracterÃsticas: a fusão de personagens ficcionais e personagens históricos; a atenção e incursão pela vida cotidiana; o neonaturalismo de aspectos centrais da trama denunciam um tipo de criação emanada por um escritor que possui senso crÃtico aguçado de modo a podar os arroubos da paixão. Esta, fundamental, mas perturbadora e de mau rendimento se não é garimpada nos batéia lúcidos da análise minuciosa de aspectos existenciais.
Meus parabéns.
Estou,hoje, com o "Soneto da Esfinge" em votação. Vá lá, decifrar o enigma...
Gostei muitissimo desse trabalho, recheado de elementos em tão curto espaço, só mesmo tendo muito competência para tal.
Parabéns!
Abraço
Lindo, mas quem era Adélia afinal? Votei e adorei. Parabéns!
FabrÃcio Costa · Vitória, ES 31/7/2008 11:35Bem, na minha inculta opinião, Adélia é a universal destruidora de corações, mais uma expressão da arquetÃpica mulher que mata o homem que a ama. Mas, é evidente, deixo abertas as portas para demais interpretações.
Fausto Oliveira · Rio de Janeiro, RJ 31/7/2008 11:54Lindo!Eu gostei muito dessa narrativa bela e aplaudo esses momentos que faz um carinho em alguém solitário e necessitado "só por interesse",hehehehe...Parabéns!Abraços.Nina.
nina araújo · Rio de Janeiro, RJ 1/8/2008 08:14
Obrigado amigos pelos comentários tão legais ao meu texto.
Um abraço a todos e todas, espero que meu pouco tempo permita conhecer o trabalho de vocês também.
Fausto
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