Um dia me vi às portas da entrada para a Amazônia, essa tão cobiçada terra de sonhos ambientais, um lugar onde respiramos ar puro livre do gás carbônico. A cidade era nova e promissora.
Descia por uma rua larga, rumo ao rio. Queria ver as águas barrentas coalhadas de toras de árvores arrancadas pela correnteza, fenômeno que deu nome ao rio. Recitei, não sei por que, Bertolt Brecht, sobre a incongruência dos paradoxos: “Fala-se da violência das águas do rio, mas esquece-se da violência das margens que o oprimemâ€. As casas, o comércio nas calçadas, a arquitetura das lojas; a própria cara do povo, com os sinais de miscigenação de brasileiros do norte, do sul, do centro-oeste, do leste, do nordeste e de gente de todo o estrangeiro; o sol abrasador e o calor úmido, lá no pico de 40° C, tudo revelava uma colônia em pleno século XXI. As pessoas andavam de um lado para o outro, os carros corriam desordenados, não se distinguia onde era do pedestre, do veÃculo, da carroça, ou do carrinho de mão do churrasqueiro, do milho cozido, do catador de papel.
Mal a moça de cabelos de fogo subiu na calçada, atravessando a rua, longe do semáforo, a moto de 1.000 cc, metálica e branca, com umas protuberâncias pontiagudas nas laterais, quase pega os calcanhares dela. Ouvi um xingamento do motoqueiro irritado. Passou num zum mortificador. Ele sumiu e ela seguiu adiante balançando forte o quadril bem feito.
O sol me fazia franzir o rosto, tentando fechar os olhos, para diminuir a claridade, que, àquela hora, vinha do oeste, pronunciando a própria geografia local. Resolvi aproveitar uma réstia de sombra de uma marquise, uma sobra de telhado de barro sobre alguma madeira nobre da região. Pareceu que a temperatura ficara amena e confortável.
Sentei-me ali. Pedi o Açaà com tapioca. Dizem que é energético e está na mira do comércio internacional. Não coloquei açúcar. Fazia o movimento circular com a colher na tigela de louça, enquanto olhava para aquela mistura espessa e escura, da cor da terra. Ao longe, subia do asfalto uma miragem tremulante de calor. As pessoas andavam na calçada, aproveitando qualquer nesga de sombra. Vivia-se a própria aspereza da natureza.
Enxerguei-me num espelho grande pregado na parede à minha esquerda. Os meus lábios estavam roxos, como se eu tivesse comido uma violeta. O lilás borrava minha boca toda. Abri e vi dentes, gengivas, lÃngua, tudo escuro. Pensei na “viola odorataâ€, na “viola cornutaâ€, na “saintpaulia ionanthaâ€, na “peltogyne paradoxaâ€, no nome de todas flores violetas. A minha boca não tinha nenhum aspecto delas.
“É AÇAÃ. Açaà vem do tupi, iwasaiâ€. Soletrou, “I-W-A-S-A-I. Significa fruto que chora, porque quando você fere a casca dele sai esse lÃquido aà lilás. É rico em vitaminas e sais minerais, especialmente o ferroâ€.
A moça de cabelos negros, olhos repuxados, de traços quase orientais, sorriu para mim, mostrando dentes claros, com caninos pontiagudos. Eu sempre gostei de dentes caninos pontiagudos, como os dos cães, leões, tigres, onças e guepardos. Isso não tem nada a ver com o açaÃ, pensei, sem tirar o olhar de cima da moça. Ela se foi, com um aceno, e eu, ainda sem vê o rio, fiquei ali sentado, como um simples transeunte.
Ignis, muito legal essa visão mostrada no seu conto. Eu, como seu personagem central, descobri a beleza do dia-a-dia da Amazônia e de seu povo recentemente. Passei dias observando o movimento das pessoas nas ruas, me apaixonando pela arquitetura local, pelos rios... Também sou fã de açaà com tapioca - mas com açúcar! :-)
Bom, para sua edição, só gostaria de sugerir duas coisas: vÃrgulas separando "Recitei, não sei por que, Bertolt Brecht" (acho que daria maior ênfase) e no finalzinho "ainda sem ver o rio".
Abraço.
Tetê, muito gratificante v. ter lido o "continho" e sugerido algo. Fiz as alterações e ficou ótimo, de fato. Obrigado.
ignis liberati · Porto Velho, RO 10/6/2007 21:19
Ignis.
Muito bacana o conto. Poderia ter colocado algumas fotos, para ilustrar os personagens. Gostaria de ver os dentes caninos ou a moto metalica e branca.
Fiquei imaginando os detalhes rs..
Ignis: Estou com ENGENHEIRO DE SONHOS no banco de cultura para voltação. Conto com vc. Eis o link>
http://www.overmundo.com.br/banco/engenheiro-de-sonhos
Abçs, Benny.
Higor,
Gostei da idéia das fotos. Não sei se irei encontrar um motoqueiro, mas uma moça de dentes caninos, ah! essa eu encontrarei.
Benny,
Estou indo ver o seu ENGENHEIRO DE SONHOS agora.
Obrigado ao Higor e ao Benny por terem lido meu conto.
Caro Benny, li o seu poema. É deveras profundo de um jeito que só mesmo os poetas sabem fazê-lo.
ignis liberati · Porto Velho, RO 13/6/2007 00:41
Um observador atento narrando o que vê e o que se movimenta
em alguns momentos participa em pensamentos, em outros apenas observa e narra. Para no final , como um camal~eao, mesclar-se a própria paisagem e aos movimentos.
Um transeunte apenas.
De bom tem tudo: coerência, conteúdo, estruturação.
Muito bom mesmo.
A cada vez que alguém comenta esse conto, eu o releio e não deixo de esboçar um sorriso. Também gosto muito dele, talvez seja pelos caninos do moça! Obrigado, caro Humberto. Seus comentários são agradáveis de ler. Até.
ignis liberati · Porto Velho, RO 17/8/2007 01:20Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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