[ invisibilidade ]
Havia esse balanço se mexendo sozinho e eu não podia dormir atormentada pelos rangidos agudos que fazia. Da minha janela se via o balanço sozinho, parado. Da minha cabeça se via o movimento vazio, assombrado. Como não conseguia dormir fui até o quintal para enfrentar meu medo. Chegando lá não pude sentar no balanço. Alguma coisa me empurrou e ainda não sei bem porque não me assustei. Aquilo tudo era tão familiar que me instigava ao invés de repelir. Repentinamente o banquinho foi para trás e voltou mais rápido para frente, como acontece quando o abandonamos. Não ouvi passos, mas sei que algo partiu naquela hora. Sentei naquele balanço vazio da minha infância. O ar estava úmido, fazia frio, mas não chovia.
- InvisÃvel! - Rita concluiu impiedosa - Você se sente ou sentia invisÃvel. Tem remédio para isso, sabia?
- Sei. - Só estranhava o fato de tentar resgatar a invisibilidade, não a infância. - Não consegui dormir depois desse sonho. Nem consigo pensar direito. Eu acordei com medo de ter me acostumado...
- Com o quê?
- Com os absurdos da minha vida. Há tanta violência sufocada por essa pretensa normalidade que, talvez, minha mente, para eu sobreviver, resolveu virar um oráculo. O problema é que não me sinto resolvendo esse enigma. É como se estivesse de fora da sociedade secreta de mim mesma.
Rita me abraçou longamente e antes de ir embora me deixou uma lição de casa:
- Pense no porquê você abandonou o balanço. Talvez seja sua chave. Já a normalidade, acho que não foi inventada ainda.
[ o beijo ]
Reparei, nessas últimas semanas, que minha lista de músicas tem umas dez com o tema beijo. Quando fiquei tão obcecada?
Há pelo menos três meses e por insistência dela, Ana e eu, vamos a todos os lugares juntas. Bares, pizzarias, exposições, cinema. Ela adora meus comentários, tanto os apaixonados quanto os irracionais. Numa das nossas idas à Pinacoteca reparei que ela inspira tijolos à vista. Seu olhar parece roubar os vermelhos quando ela se recosta nas paredes do museu. Ela tem esses inacreditáveis olhos castanhos tão lÃmpidos que daqui se podem ver suas crateras dilatando. O que me enlouquece de certo modo porque sei que não posso mais escapar. Sinto-me perdida.
De volta para casa, disse-me que estava no melhor lugar de sua vida. Acho que quis dizer melhor momento porque falávamos de coisas pelas quais passamos e que gostarÃamos de mudar. Quase a beijei. Quase... Ela me deu aquele olhar meio “Natalie Portmanâ€. Sabe, aquela olhada nos lábios prenunciando o beijo? Lembrei que estávamos no meio da rua e o problema de relacionamentos homossexuais é que nunca sabemos o quanto estamos, ou não, “fora do armárioâ€. Sobretudo fiquei com receio de levar um tapa. Isso nunca! O sinal abriu e fui contando as faixas brancas para chegar do outro lado da rua com a mente tranquila. Também cantarolo “Garota de Ipanema†quando entro em pânico e preciso tirar uma imagem ruim da cabeça, ajuda!
Foi a primeira a fechar a porta e eu fiquei com medo disso significar que ela tinha pressa em se livrar de mim. Travei por um instante sem conseguir virar a chave, num impulso maluco pulei para fora de casa e no corredor ela já estava me esperando. Nos beijamos sem trocar palavra e ela tem mesmo esse não sei o quê. Gosta de mim também, eu acho, e pareço mais assustada do que antes de saber qual caminho seguir com ela. O que importa é que, agora, há essas faÃscas de possibilidade de fazermos isso juntas.
“A lÃngua, a saliva, os dentes
Meus olhos estão fechados
A lÃngua, a saliva, os dentes
Meus lábios estão abertos
Agora meus olhos abriram
Meus olhos molharam
Agora seus olhos abriram
Seus olhos me olharam
O olho olha e beija
A mão segura e beija
O nariz respira e beija
A boca come e beija
O sexo goza e beija
O ouvido ouve e beijaâ€
(Kid Abelha - O Beijo)
Desdobramentos parte 3
Olá! Qto tempo! Tô muito atrapalhada, nem sei quando postei pela última vez...
Ana Cris · São Paulo, SP 18/10/2010 08:17Passo vez ou outra por aqui... esperando alguma coisa nova sua...rs
Yana · São Paulo, SP 26/3/2011 15:34tá na hora de voltar,né? é que ando ocupada...
Ana Cris · São Paulo, SP 26/3/2011 18:36Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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