Era um meio de tarde, quente, insípido, fatigante, e, enquanto esperava o sinal abrir, um desconhecido, com uma folha de papel na mão bateu na janela do meu carro como se quisesse pedir uma informação. Com coragem desci o vidro e só então pude notar, apesar de transbordante ternura, como estava aflito seu olhar e como estava alva sua face. Sem demora entregou-me o papel e uma caneta e disse-me: desenhe, por favor, o local onde posso encontrar os anjos. Anjos? Perguntei. Sim, os anjos. O senhor não sabe onde eles moram? Fiquei assustado, confesso. Quem seria aquele homem fazendo um pedido impossível de eu realizar. O sinal abriu, os carros buzinavam atrás de mim. Surpreso e temeroso devolvi-lhe o papel e a caneta e segui em frente.
Olhei pelo retrovisor do carro e ele continuava parado na mesma posição, com o papel e a caneta na mão. Parei mais adiante e fique a olhar o que faria em seguida. Passados alguns minutos, o sinal fechou novamente e ele continuou estático. Não abordou nem um outro carro. Porque agiu assim, perguntei-me. Era como se tivesse ficado desapontado com a minha reação. Lentamente recuou e sentou na beira da calçada.
Vi, de longe, que passou as mãos nos cabelos, baixou a cabeça e começou a escrever alguma coisa no mesmo papel que tinha me dado poucos minutos antes. Talvez fosse alguma mente e alma desatinada, um pobre doente, um quase desistente da vida, pensei. Senti uma sensação estranha de desamparar aquele homem. Meu sentimento de piedade pública, entretanto, deu-me coragem de entrar no carro, fazer a volta na quadra e procurar saber o que realmente ele desejava.
Levei, no máximo, cinco minutos para chegar até o sinal onde ele tinha me parado. Para a minha surpresa ele não estava mais lá. Encostei o carro e desci. Nem um sinal dele. Fui até a esquina e olhei atentamente para os dois lados da rua. Nada. É um bairro onde não passa ônibus, como poderia ter ido embora tão rapidamente. Poderia ter pegado um táxi. Uma carona de alguém. Duas idéias que me pareciam absolutamente improváveis. Perguntei na banca de revistas. Contei o fato para o dono e ele, também surpreso, disse que ninguém pediu para ele esse estranho tipo de informação. Sai desapontado e voltei para o carro.
Antes de entrar dei uma nova espiada em todo o redor. Em vão. Era como se o mundo o tivesse tragado em apenas cinco minutos. Fique indignado comigo mesmo. Não se joga para o nada uma pergunta que nunca tinha ouvido na vida, mesmo que parecesse alucinada, sem sentido, incoerente. Afinal, na vida, tudo tem sentido. Mesmo com uma incurável sensação de perda, abri a porta do carro e sentei ao volante ainda pensando de como fui insensato, de como fui covarde de sentir medo daquela alma no meio de uma tarde e tendo um amontoado de pessoas e carros ao meu lado.
Fiquei por alguns minutos pensando no andar e surpresas da vida. Gratas, muitas vezes, infelizes, tantas outras. Pensei nas oportunidades perdidas de fazer o bem, de não acreditar nas pessoas, de dizer não, muitas vezes, para tantos homens, mulheres e crianças para quem o destino prometeu e não cumpriu e que andam desatinadas pelas calçadas frias das grandes cidades.
Voltei à realidade, ao presente e acelerei o carro, quase na mesma proporção que acelerava meu coração e continuei a rotina diária do meu trabalho. Voltei para a casa no começo da noite. Nada contei a ninguém. Guardei aqueles momentos da tarde entre as paredes mais fortes do meu coração. Não tinha explicação para nada e nessas horas o silêncio pode ser o melhor de nossos amigos.
Fui até a sacada do meu apartamento onde moro por mais de vinte anos. Olhei a cidade na sua fria imensidão de pedra. Passei um tempo esquecido da vida. Bisbilhotei o céu, sem lua, sem estrelas, e, de repente, fiquei a pensar se aquele homem não pudesse ser um desses protetores anjos que descem a terra para semear a paz nas entranhas das almas solitárias. Não custa sonhar com o que não conhecemos, com o que ainda não conseguimos desvendar. Dormi um sono agitado.
Pela manhã, ao sair para o trabalho, entro no carro e como de hábito aciono o limpador de pára-brisas. Em êxtase o desligo imediatamente. Saio do carro e vejo preso entre os limpadores uma pena branca, com as pontas lilás, a qual guardo até hoje, como um tesouro, como um sinal que vem muito acima de todas as estrelas. Sinto um enorme frio interior. Acaricio aquele sedoso presente dos céus. É claro que poderia ser de um pássaro, mas descartei na hora essa idéia. Na verdade, cansei de buscar explicações terrenas para fatos estranhos que acontecem no andar da minha vida.
Olhei para um céu azul de brigadeiro e agradeci por aquele presente, que logo imaginei divino. Com um sorriso nos lábios sai para trabalhar imensamente feliz. Voltei a arrumar tudo que andava desarrumado em meu interior. Na realidade, voltei a acreditar na felicidade, porque sei que os anjos existem. Que são coloridos e também, algumas vezes, se perdem, por alguns minutos, pelo cimento das ruas na ânsia de nos ajudarem a encontrarmos as cartas de saudades que um dia deixamos espalhadas pelas esquinas do tempo. Afinal, como já foram humanos e agora, como nossos guardiões diários, eles também devem sentir imensas saudades de nós. Acredito.
Grande Noélio...valeu a pena depois de dois anos publicar uma obra prima...o mistério está justamente na sua indecisáo...Bendita indecisão,ãlias ela foi proposital, fez parte do jogo divino que lhe fez refletir...Poucos tem a chance de sentir as divindades...Apreveite-a,
abraços
Lindo texto! Desejo a você uma grande paz no coração, meu amigo. Tenho saudade daquelas manhãs na Comtato em que trabalhava e aprendia muita coisa sobre a vida.
Enfim criei minha conta no overmundo. Está na hora de me dedicar mais às palavras do que aos códigos de programação. Lendo seus textos me sinto tão pequeno, mas ao mesmo tempo grande em saber que, seguindo apenas 1% de seus passos, posso voar além do que jamais imaginei chegar.
Abraços.
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