Prelúdio para um tango
Hoje sepultei minha mulher. Enterrei debaixo da sequóia que ela mesma plantou, há cinqüenta anos. A chuva havia passado e o céu estava estranhamente verde. As nuvens tinham dezenas de tons em verdes e corriam rápidas - era o vento forte daquela tarde. Ante ao corpo que havia enrolado num lençol de linho estava eu, com uma pá na mão, o verde vento que fazia uma prece e Abril, um cachorro de 15 anos de idade, que chorava. Não havia mais ninguém naquele lugar. Lembrei-me daquela noite em que minha mulher acordou assustada e fez este pedido: quero ser enterrada debaixo da sequóia que eu trouxe da Ãfrica, assim poderei olhar sempre para a janela do nosso quarto. Voltou a dormir e me deixou cismado com os olhos pregados no teto do quarto.
Voltei para casa embriagado pela adrenalina, foi um momento único em minha vida. Não sei se estou triste ou feliz! Talvez ambos. Triste porque enterrei minha amada numa tarde de inverno e dor. Pelo caminho entre o arvoredo, percebi algo que me fez mudar de atitude ante as coisas do mundo, inclusive minha própria existência. Não saberei explicar o que se passou naqueles minutos ao longo da caminhada. Foi como se um oceano de lÃquidos, que minha mente jamais havia produzido, surgisse junto, me abrindo portas e ampliando a minha percepção, profundamente.Talvez a despedida de minha mulher naquela tarde única... Melhor, talvez as nossas vidas, até aquele momento, fossem apenas o prelúdio para uma outra existência.
Já é noite e pela janela do nosso quarto, ainda vejo Abril sobre o túmulo de Brana. Logo vai chover, acho que vou dormir.
Manhã fria, as nuvens mijam grossas gotas de água, que empoçam ao longo da estrada. O céu escuro de metal, às vezes, é traçado pelo brilho dos relâmpagos e alguns peixes miúdos que despencam das nuvens com a chuva. Abril continua deitado sobre o túmulo de Brana, vejo isso pela janela. Caminho novamente pela casa vazia. É o primeiro dia do resto de minha vida, estou triste e vou buscar o cachorro que pode até morrer sob a forte chuva. Abril é um cachorro idoso; sua companheira também havia morrido. Ariel foi picada por uma cobra como foi Brana, minha querida esposa. Ele está frio e com os grandes olhos esbugalhados, treme muito. Acho que Abril sabe o que é a morte! Eu não sei o que é a morte ao certo. Imagino que seja apenas transformação da matéria. Restos de estrelas.
Refeito, Abril adormece debaixo da mesa da cozinha.
O dia divaga como a fumaça do cachimbo. Ãguas do céu, relâmpagos e cores cinzas fossilizam em minha janela.Os pássaros estão em seus ninhos e, pela janela, vejo o reflexo da vegetação nas poças e folhas mortas que dançam ao vento sobre o túmulo de Brana.
Eu nunca havia escrito uma linha sobre nada neste mundo. Abril dorme profundamente, o dia parou. Meu coração está quebrado e a chuva continua a urrar como um animal ferido. Penso em Brana, que já não vive, recordo do seu sorriso invisÃvel e sua geléia de morangos. Agora escrevo versos.
Interessante a morte fazer nascer poesia.
Gostei do conto. Gostei do teu texto.
Mas por que "trecho", Arlindo? Continua?
maravilha!
Na verdade é um romance. Imagino termina-lo até 2007.
Trata-se de um longo romance. Foi apartir da ideia que escrevi um roteiro para cinema. "O lado oeste da Noite" -- pretendo filmar.
obrigado
af
O romance
O personagem principal virá um poeta. Depois vai viver num outro lugar.Neste lugar, que fica à margem do rio Paraguai, ele conhece
uma mulher, por quem se apaixona. Vive um amor platônico.
O nome dele é Agosto e o dela é Quimera (como uma ópera).
Os poemas do personagem, Agosto, viraram canções. Vc quer ouvi-las? procure por "Prelúdio para um tango" (ta aà no overmundo).
Geraldo Espindola canta.
Olha!!!
é uma longa história (400 páginas).
abraços
Muito poético seu texto, riquÃssimo nas imagens que vc constrói. Amei. Tomara que eu possa ler o romance, Arlindo! Estou ansiosa para me deliciar com as metáforas que vc faz.
Abraço
OBRIGADO.
vai ler sim, com certeza.
O livro ainda tem o tÃtulo provisório "Prelúdio para um tango".
abraços
af
Nossa Arlindo, não sei se é a lua ou o olho nas letras, o caso é que me tocou às lágrimas.
Abraço
A Lua.
Foi a Lua. Vc sabe que devido sua proximidade com a Terra
ela exerce uma atração, sobretudo nos liquidos.(Lua cheia vc viu!)
Com certeza ela altera as criaturas vivas, como nós que temos 90% de água. Quer que eu faça um desenho??? (Risos,risos e risos).
abraços e abraços.
af.
Se desenhar acabo feito lobo fazendo cantoria pra lua (gargalhadas)! Carinhão pra tu e Cris
Bia Marques · Campo Grande, MS 10/10/2006 10:58
desenho
Pra onde vc quer que eu mande o "desenho"?
tá pronto. Chama se "BiaMarquesfeitolobaeaLua".
Então?
af.
manda pra fila de edição!!!!!!!!!!!!! bom feriado que tô indo pra Cuiabá!
Bia Marques · Campo Grande, MS 10/10/2006 20:22
Arlindo, que beleza!!!
Que texto!!!
Parabéns, tuas imagens são viagens pra gente!!!!
Ma-ra-vi-lho-so! As metaforas realmente enchem os olhos. Parabéns!! A morte é comum aos vivos em qualquer lugar ou tempo, é algo que nos aproxima pela distância...
Claudiocareca · Cuiabá, MT 11/10/2006 17:59Lindo, sensorial, harmonioso, triste, feliz.... Tudo!
zepereiranoticias.blogspot.com · Belo Horizonte, MG 20/12/2006 21:53AÃ, Arlindo, maravilha! Tem algo de panatanal mesmo na tua escrita, algo de musgo, de água, de vida e morte! Tem Manoel nas entrelinhas e Barros nas linhas, poesia e natureza entre pedras e chuvas. Com estilo próprio. Gostei. Manda mais, rapaz! Abraço.
Nivaldo Lemos · Rio de Janeiro, RJ 25/1/2007 15:18Arlindo, um conto antigo seu acaba de de invadir um coração um coração novo. Faço das minhas palavras a do sr Felipe. Dá pra se ouvir o barulho da chuva nas árvores e vontade de comer geléia de morango!
Rodrigo Nogueira · Rio de Janeiro, RJ 26/1/2007 12:55
Rodrigo!
Fico profundamente grato e inspirado! (Vc pode ouvir uma canção com este tÃtulo "Prelúdio para um tango" Geraldo EspÃndola canta. tá no banco de cultura musica).
Se vc tiver um tempinho tenho vários outros contos publicados aÃ.
Por exemplo. Escrevi 4 contos para o menino Manoel de Barros.
"Uma história,quase,mágica"
"Uma história,quase,mágica2"
"A menina que conheci"
"A vida secreta dos anus-prêtos" (bco. de cultura).
abraços
Vim ler de novo.
E com estes olhos de agora achei muito lindo.
Abração.
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