Júlio era cético. E o adjetivo caÃa-lhe perfeitamente bem. Era desses sisudos, completamente descrentes da existência de qualquer coisa que não seja concreta. Desnecessário dizer que não acreditava em Deus, vida após a morte, intuição, destino, astrologia, sorte ou azar . Explico detalhadamente para delimitar bem a imagem do matemático. Sua formação apenas reforçou suas idéias de que na vida "tudo é questão de probabilidade". Sem chances para os predestinados.
Após anos dedicados quase que unicamente à ciência, um dia, depois de longo e tenebroso inverno, Julio se apaixonou por Clara. Por mais que buscasse explicação para o sentimento que o assaltara, não encontrava, limitado que estava por seu conhecimento cientÃfico e idéias muito antes concebidas. Júlio amava, por exemplo, seus pais, mas tinha certeza que aquilo se dava por um misto de agradecimento e falta de opção. Afinal, vivera com eles toda a vida. Mas a paixão por Clara era algo que desafiava a razão.
Inadvertidamente, Júlio encontrara uma mulher com idéias totalmente diferentes das suas. Ao contrario do rapaz, Clara acreditava em tudo o que lhe parecia irracional. Proclamava-se 'holÃstica', o que a ele parecia um bom sinônimo para 'crédula' .
Clara tinha na parede do quarto seus mapas atrológicos pendurados com todos os 'pontos importantes de sinastria' marcados em vermelho. Aliás , o quarto parecia uma tenda de milagres, tantos os badulaques de inúmeras crenças - 'das mais absurdas' - misturados . Isso sem falar nos aromas provenientes de tipo de óleos , pomadinhas e incensos.
Júlio estranhava as atitudes da moça, mas nada o deixava tão perplexo quanto à mania de Clara com jogos de azar. Apostava sempre que podia e colecionava volantes antigos. Seu preferido era a Mega Sena. Jogava religiosamente todas as semanas.Todas.
Não se pode dizer que Júlio aprovava o que chamava desperdÃcio de tempo , esforço, esperança e dinheiro de Clara mas , como estava realmente apaixonado e este era o único motivo de desentendimento entre os dois, tratava de ir levando mas, não sem protestar.
Durante a convivência Julio inúmeras vezes advertira Clara de que a probabilidade de ganhar na mega sena era de uma em 50.063.860. __ E da�! - retrucou a moça na última discussão que tiveram .
__Se eu não jogar a probabilidade será nenhuma. Você também deveria fazer um joguinho, passa essa calculadora pra cá. Hum, se vc jogar comigo as chances sobem para... 25.031.930 para um, não é isso?
Não adiantava discutir. Gostava daquela mulher apesar da sua mania absurda de crer no que não é palpável e resolveu que não discutiria. Mas, pedir para que jogasse já era demais.
___ Ah, joga, amor, vai. Aumente as minhas chances.
___Não.
___E qual seu número preferido?
___Gosto dos números perfeitos, como 6 e 28 e dos números de Fibonacci 13, 21, 34, 55...
___Dá um bom jogo.
___Isso não dá em nada, nem se eu jogar a vida inteira.
___Vamos ver.
Depois daquela conversa , Clara fez dois jogos. Um com seus números , outro com os de Júlio e prendeu os comprovantes com um imã na geladeira.
Durante os dias que se seguiram, cada vez que abria a geladeira em busca de um suco ou uma geléia, Júlio olhava os comprovantes e começava a imaginar como seria maravilhoso se ficasse rico de uma hora para outra assim, sem o mÃnimo esforço. Que seria o melhor a fazer? Daria entrevistas explicando como os números perfeitos e os de Fibonacci o haviam ajudado a se tornar o mais novo sortudo do paÃs ... Pensando melhor não contaria a ninguém . Pegaria a mulher e sairiam num cruzeiro, numa volta ao mundo. Teria todo o tempo do mundo para estudar e curtir a vida com Clara sem pensar no amanhã. Passou algumas horas imaginando quantas coisas jamais sonhadas poderiam fazer juntos . De quanto era o prêmio mesmo? Ah , se ganhasse seria maravilhoso.
Um daqueles dias, ao fechar a geladeira, viu que os comprovantes não estavam mais presos no imã. Procurou pelo chão, talvez houvessem caÃdo. Nada. Clara explicou que os números já haviam sido sorteados. Que não haviam ganho coisa alguma. Que ele estava certo. Que era era mesmo uma tola. Que não jogaria mais.
Clara cumpriu sua promessa. Continuou a ser a mesma pessoa crente em algo mais que o que os olhos vêem e entrou em um curso de astrologia avançada , mas desistiu dos jogos de azar . Júlio, por sua vez, aposta em Fibonacci até hoje.
Júlio era cético. E o adjetivo lhe caÃa perfeitamente bem. Era desses sisudos, completamente descrentes da existência de qualquer coisa que não seja concreta.
"A esperança é a maior e a mais difÃcil vitória que um homem pode ter sobre a alma". Georges Bernanos
Muito bom o texto !
Vanessa,
Muito bom o seu texto. As probabilidades estão aÃ, independente das crenças e não-crenças, os dados estão sempre sendo lançados, sorteando os resultados, nas apostas que fazemos na vida (nos jogos de azar ou em outros campos). Mesmo que as chances sejam de 1 em 1 milhão, nós não cansamos de jogar, de arriscar para ganhar, ou só pelo prazer de arriscar...
Parabéns ! Vo(l)tarei.
Bjs poéticos
Muito bom! Nos relacionamentos acontecem disso, né?, um adquirir os gostos e manias do outro. Primorosa naradora, como sempre.
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 4/9/2008 23:21Muito bom Vanessa, bem escrito, e até com uma pitada de bom -humor. VotadÃssimo, vc pode produzir contos seguindo por esses caminhos. Beijo
Angélica T. Almstadter · Campinas, SP 5/9/2008 12:21
Muito bom o texto. Prende o leitor, o que é essencial.
um abraço
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