Elas moÃam a carne na máquina manual, a manivela, que elas prendiam no canto do mármore da bancada da cozinha. Entravam grandes cubos de carne vermelha, toda limpa, sem nervos, e saÃa aquela massa uniforme, moldada pelos furos do moedor. Depois de catadas as fibras restantes, a carne voltava pra máquina, muitas vezes, com cebolas em cubos, que iam ficando quase lÃquidas quando moÃdas, e depois vinha a pimenta sÃria, a canela, o coentro em grão moÃdo, o pimentão vermelho, a água gelada, o burgol que não se deve deixar de molho pra não amolecer demais. E as mãos para misturar tudo. Para servir, a cebola em gomos, as folhas graúdas de hortelã e o azeite para bem regar o quibe cru.
A salada, fatuche, salpicada com o pão árabe torrado na medida pra desmanchar em contato com o suco de limão, o azeite, os tomates frescos, o cheiro verde e o pepino crocante. O segredo era cortar as pontas do pepino e esfregá-las no corte, para tirar o amargo, o leite ruim. A casca ficava, para fazer a digestão.
Couve-flor com taratô, kbebat, ataife, esfihas abertas e queijo com misky. Babahanush, houmus, azeite, azeite, azeite. Azeitonas pretas, carnudas, gordas. Coalhada seca, zahtar, pão papel em dias de festa, chancliche. E mais azeite.
As folhas de uva envolvendo arroz e carne moÃda com pimenta sÃria, a capa de filé no fundo da panela, um pouco de massa de tomate, tempo, paciência. Cheiro doce de famÃlia e canela e o arak do vovô, que enchia a sala com o anis volátil, prontamente turvo ao contato com a água, mágica para as crianças. Pistache, amendoim, terços de âmbar na mesa, bandejas enormes de latão dourado, café no bule árabe, que se deixava pousar antes de servir, sem coar. Tapetes, tapetes e mais tapetes. Unhas vermelhas, música e coisas douradas.
A mesa posta na sala de jantar para os adultos e na sala de almoço para as crianças, com toalhas de plástico.
No quintal de cimento, os tamancos de madeira, o tanque cantando, o varal cheio, as empregadas e o fumo de rolo no cachimbo na hora do descanso no quarto ao fundo do quintal, em cima da escada torta e caiada. O pente de ferro para esticar os cabelos com hené, as imagens do sagrado coração de Jesus, a nossa senhora aparecida na micro-televisão com luz negra, a foto retocada, muito azul-turquesa, do longÃnquo casamento na ParaÃba. Os uniformes xadrezinhos, o rádio sempre ligado, o pano na cabeça, ave-maria à s seis da tarde, a missa de domingo.
No terraço, fiel testemunha da minha história, o piano que agora mora aqui comigo, no Leblon, e me acompanha nesta saga saborosa, perfumada e cheia de amor que é a minha vida. Música, a única sÃntese possÃvel.
* A Rua Montenegro, em Ipanema, é a atual Rua VinÃcius de Moraes. Ele, ipanemense como eu.
reminiscências sensoriais de infância numa famÃlia árabe de Ipanema
Ai que lindo, saudades. Obrigada!
Lindo, lindo! E vc tem um piano! Bênção.
ih, joca, tem razão, sem crase...!
compulsao diária, sentiu saudades de quê?
Andrea,
Adorei seu texto, de ritmo natural e cativante. Além disso, trouxe muita coisa boa: comida árabe, cheiro de canela, realidades mescladas, piano.
Votos e carinho.
O, Andrea, esse sua lembrança me fez salivar! adoro comida árabe! Não passei a infância na Montenegro, mas também tive uniforme xadrezinho, ave-maria no rádio às 6 da tarde e uma mãe que moia a carne pro quibe assim mesmo: primeiro a carne, depois a cebola cortada em quatro, os temperos... saudades que me deu desse gosto de quibe feito na hora pela mão de minha mãe. Seu texto está lindo de saudades!
beijos
Andrea.
Uma maravilha de tirar o fólego.
Beijos
pedro, poxa, que lindo!
ikhandarilha, "lindo de saudades" é muito bom! é isso, mesmo, saudades...
marcilio, famÃlia...
beijos, celina,
obrigada, novo poeta
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