- Agora é tarde... não há mais nada que você possa fazer!
Essas foram suas últimas palavras audÃveis. Tomado por um tipo de cólera, começou a pronunciar palavras ininteligÃveis. Numa das mãos segurava um livro, não consegui definir qual era. Parecia um livro antigo ou mesmo uma bÃblia. Seria, no mÃnimo, irônico. Mas não, desta vez não era irônico, era trágico. A sequência de palavras era um tipo de ritual. Começava como um sussurro e ia aumentando gradativamente. Aos poucos ia tornando-se cada vez mais audÃvel, embora continuasse ininteligÃvel.
Em torno daquele homem estavam aproximadamente trinta policiais armados. Todos tinham ordens expressas para atirar, se fosse necessário. Todos estavam perplexos diante do inevitável. Eu era o encarregado de negociar com ele para tentar que tudo se resolvesse da melhor forma. A melhor forma seria impedir que alguém se ferisse. A frase foi dirigida diretamente pra mim. Eu seria aquele que teria que carregá-la por um bom tempo.
Uma frase como essa pode não ser tão pesada. Tudo depende do contexto no qual ela está inserida. Uma torrada que passou do ponto e "agora é tarde... não há mais nada que você possa fazer!". Dez minutos de atraso para chegar à rodoviária e "agora é tarde... não há mais nada que você possa fazer!". Ou seja, uma frase que poderia até ser chamada de banal. Mas, se você está levando um coração para um transplante, ela ganha outra conotação. Se você está tentando salvar seu casamento, é difÃcil ouvÃ-la. Se você está fazendo uma negociação com um cara que está visivelmente alterado, você se sente pressionado.
O caso é que o sussurro inicialmente inaudÃvel já havia se transformado em berros descontrolados. E, além de tudo, ele chorava. Não sou uma pessoa que se comove facilmente. Na verdade fiquei prestando atenção no patético da sua cena. Quer dizer, nesta tomada a cena parecia somente patética, mas se aumentássemos o campo de visão, poderÃamos ver o que me amedrontava.
Além do livro nas mãos, o sujeito enlouquecido carregava também uma arma. De onde eu estava não conseguia ter certeza de que arma era, mas percebia que era uma automática. Na mira da arma estava ele mesmo. Sim, ele tinha a arma apontada para a própria cabeça. Ameaçava suicidar-se. Até aà tudo bem, alguns poderiam pensar. Apenas um louco a menos no mundo. Sou obrigado a confessar que também pensaria isso. Mas, a cena ainda não estava completa.
Atrás do sujeito, havia mais umas duzentas pessoas. Todas elas tinham livros nas mãos. Todas elas estavam em transe. Todas acreditavam piamente que o que aquele homem estava gritando era uma espécie de mantra. Talvez fosse mesmo. Essa seria uma explicação plausÃvel para quem tentasse compreender porque aquelas pessoas seguiam o cara.
Quando eu era pequeno, acreditava piamente em tudo o que o meu pai dizia. Quando deixei de acreditar nas palavras de meu pai, elegi um professor como portador da verdade. Quando vi meu professor se contradizer, elegi um polÃtico que admirava como um ser acima de qualquer suspeita. Parece que sempre estamos tentando transferir a responsabilidade de nossas ações para alguém próximo. Quando inevitavelmente me dei conta de que isso era impossÃvel, decidi tomar as rédeas de minha própria vida.
Aquelas duzentas pessoas não concordavam comigo. Pelo que eu via, elas estavam dispostas a seguir, fosse pra onde fosse, com aquele homem. Elas tinham galões imensos junto a elas. Algumas tinham tochas nas mãos. Eles acreditavam em algo que, talvez, estivesse longe da minha existência tão limitada. Nunca tive vocação para mártir. Meu maior desejo sempre foi chegar em casa ileso e poder desfrutar dos prazeres que eu tinha escolhido, sozinho. Prazeres solitários. Escolhas solitárias. Poucas expectativas de redenção.
A situação continuava tensa. Na verdade, a tensão parece que se tornava palpável. Eu podia ouvir minha própria respiração. As tentativas de diálogo não davam resultados. Segundo o homem, tudo na vida já estava decidido. Essa cena grotesca estava acontecendo porque era pra acontecer. Eu estava envolvido naquele imbróglio porque assim era pra ser. Segundo ele, eu pedi essa minha vidinha miserável. Ou seja, segundo ele, sou masoquista!
- Agora é tarde... não há mais nada que você possa fazer!
Essas foram suas últimas palavras audÃveis. Tomado por um tipo de cólera, começou a sussurrar palavras ininteligÃveis. A sequência de palavras era um tipo de ritual. O sussurro, inicialmente inaudÃvel, já havia se transformado em berros descontrolados. Num último impulso ele abriu os braços. Acho que era um tipo de sinal. As duzentas pessoas começaram a mover-se. Foram em direção aos galões. Eu, tomado pela força de todo daquele ritual, gritei algo que nunca conseguir definir o que era e corri em sua direção. Todos olharam para mim. Ele ainda tentou trazer a arma para próximo do seu corpo. Fazia parte do seu plano, a morte como redenção. Na tentativa de se tornar um mártir, seu disparo me atingiu.
O projétil atravessou meu peito. Realmente era uma arma automática. Por uma incrÃvel coincidência acertou exatamente meu coração. Foi um disparo fatal. Eu usava uma camisa branca que se tingiu de um vermelho sangue. Sua profecia se cumpriu. Ele foi preso. Os duzentos fiéis esperam por sua saÃda da prisão. Ainda haveria tempo para a salvação. Menos para mim. Afinal, o anti-cristo estava morto.
Oi Max, li seu texto e o achei bem construido, mas o que o torna interessante é que ele foi escrito por um... fantasma! Voltarei para votar. Bjssss
Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 9/6/2008 18:47
Max, interessante o seu texto. Gostei.
Um abraço.
Publicou?
Eeeeeeeeeeeeeeeeeee hehehe
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