SOFISTICAÇÃO E DISTINÇÃO NA BOSSA NOVA: IDENTIDADE NACIONAL E POPULARIDADE NA “PALMA DA MÃO”
PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL
Doutor em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Bolsista de Pós-Doutorado (CAPES/PNPD) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará
RESUMO
No rol dos aspectos sonoros, estéticos e sociais que estabeleceram a Bossa Nova como movimento musical sui generis, reflito sobre duas circunstâncias correlatas que acompanham sua história ao longo de cinqüenta anos de existência, circunstâncias estas que talvez hoje estrondeiem mais intensamente do que na época em que esta música despontou como paradigma na invenção e desenvolvimento daquilo que posteriormente passou a ser chamado de MPB: o tipo de popularidade na qual a Bossa Nova ao mesmo tempo se amplia e se restringe, e o fato de ter sido elevada à condição de símbolo identitário nacional. Ao menos em parte, ambas teriam decorrido do envolvimento dos bossanovistas com a idéia de conferir à música brasileira um caráter singular e inovador de requinte e sofisticação, na estrutura musical, na escolha instrumental e na maneira de tocar e cantar, em contraposição a heranças marcantes do Romantismo diluídas em diferentes gêneros musicais populares surgidos do Brasil a partir da Modinha. Por outro lado, o pretenso rompimento com o cânone teria atuado na cristalização a Bossa Nova como essência intocada, atualmente saudosista, concebida por poucos (alguns já falecidos, inclusive), vasta na produção discográfica e pouco tocada no rádio, apesar de sua performance despojada aproximando músicos e público, do inegável legado do samba em sua constituição de base, ou mesmo das letras das canções, “limpas” como os traços modernos de Niemeyer, descontraídas como o espírito que o Brasil vende internacionalmente, ou mesmo lúdicas, como que para qualquer criança ouvir e entender.
Palavras-chave: Bossa Nova, modernismo musical, popularidade, identidade nacional, sofisticação/simplicidade.
TEXTO
Sem necessitar (e sem competência para) aprofundar aqui considerações em torno dos méritos estéticos e estritamente sonoros da Bossa Nova na constituição da chamada MPB e na música brasileira de uma forma mais ampla, aproveito a ocasião deste anuente e saudador fórum de discussão para tomar uma contramão e pensar sobre este movimento como algo que de algum modo se cristalizou no tempo-espaço de cinqüenta anos de história.
No entanto, falar de cristalização não implica em considerar que a Bossa Nova não se transformou ao longo de sua existência. Implica sim em trazer à baila temas que no meu entender lhe conferem ambigüidades cabalmente bem-vindas à discussão, das quais por um lado teriam se servido favoravelmente o país, os bossanovistas e o gênero musical em si, mas que por outro talvez tenham gerado algum tipo de frustração silenciosa em quem, por “irrepreensível” apreço musical, não deixa de sentir saudade – apesar dos versos de Tom e Vinícius mandando a saudade pra lá. Mais especificamente, refiro-me ao tipo de popularidade experimentada pela Bossa Nova e à forma como vem se destacando enquanto marco da identidade musical nacional.
Vale deixar claro neste prelúdio que popularidade e identidade constituem variáveis que na Bossa Nova inelutavelmente incorporam o cenário internacional, de modo especial o dos Estados Unidos. Ora, não é por acaso dizerem (e também não dizerem) que a Bossa Nova é o jazz feito no Brasil. Ainda, quero subverter o que seria esperado de um pesquisador em termos de transparência metodológica para falar de popularidade e identidade partindo de uma inquietação pessoal, sobre a qual somente agora começo a dar-me conta em termos mais reflexivos e para a qual eu ainda não calibrei delimitadores.
Se popularidade e identidade constituem respectivamente causa e conseqüência (ou vice-versa), deixo este problema de lado. O que importa aqui é considerá-las interligadas dentro do problema que pretendo abordar neste primeiro “passeio” que faço pela Bossa Nova.
Apesar da “história e das histórias da Bossa Nova” (citando o subtítulo do documentário intitulado Coisa Mais Linda), somente quando estive nos Estados Unidos por quase dez meses ininterruptos é que pude ter uma noção mais plena em torno do reconhecimento musical do Brasil naquele país através da Bossa Nova. Uma vez identificado como músico brasileiro, no meio acadêmico, entre artistas de rua, ou simplesmente trocando meia-dúzia de palavras com gringos desconhecidos, logo me perguntavam sobre a Bossa Nova: se eu poderia cantar uma canção, tocar violão, ou mesmo lhes ensinar a “bossa”. Pior do que ter de assumir que não me sentia capaz de lhes responder satisfatoriamente, só mesmo se me pedissem para sambar ou executar “embaixadinhas” com uma bola de futebol. Diante de minha limitação, lhes restava demonstrar-me solitariamente o que sabiam de Bossa Nova, mesmo em canções sem palavras; isto é, demonstrando conhecer melodias como a de Garota de Ipanema, por exemplo, sem que para isto soubessem o português (e muitas vezes nem mesmo sua versão em inglês, imortalizada na voz de Frank Sinatra), ou ainda, sem que a imaginassem como sendo também de autoria de Vinicius e não apenas de Tom.
Metaforicamente, a Bossa Nova no Brasil consistiria também em uma espécie de canção sem palavra, com o adendo de que somos brasileiros, assim como a Bossa Nova, assim como o Antonio Carlos Brasileiro, o Jobim. Metaforicamente ainda, a canção sem palavra refletiria um tipo de popularidade vivida pela Bossa Nova em território canarinho, ao mesmo tempo ampla e restrita.
Sua amplitude relaciona-se ao fato de ter se tornado símbolo identitário nacional, pelas referências à Bossa Nova como “boa” música brasileira, pelo segundo batismo do aeroporto internacional do Rio de Janeiro, por seu reconhecimento fora do país, ou mesmo por ter sido um movimento de base no processo de invenção da vindoura MPB, talvez a mais proeminente sigla de distinção cultural e social na história da música brasileira entre o “bom gosto” e tudo o que pode ser enquadrado como som “menor”.
Já a restritividade da Bossa Nova poderia ser pensada com base nas formas através das quais se tornou popular no Brasil, que no meu entender não se coadunam naturalmente à sua condição de arauto propagandístico da música brasileira. De qualquer forma, a Bossa Nova é símbolo nacional mesmo, aqui dentro e lá fora.
Entre algumas destas incompatibilidades cito a relação a princípio disparatada entre a construção da identidade nacional através da Bossa Nova e o consumo restrito deste gênero musical dentro do país. Se não restrito, ao menos um consumo “especializado” e distintivo praticado por quem encontra na Bossa Nova, especialmente hoje em dia, um refúgio para a “boa” música que o Brasil pode fazer, vender e projetar em “grande estilo”. Ironicamente e seguindo o dito popular, porém, o movimento em si, de tão bom durou tão-pouco.
Mas a Bossa Nova continua presente nos projetos artísticos de “incontestáveis” personalidades da MPB, é claro. Ora, apostar na “qualidade inerente” da Bossa Nova é quase como disputar uma eleição consigo próprio, pela falta de um concorrente cujo requinte e sofisticação possam ser comparados a ela, apesar do legado do Samba em sua formação, ou da própria história da música brasileira pós-República calcada em grande parte no espírito do Romantismo que inundou o Ocidente no século XIX.
Assim como a música Brega é rotulada, sem delongas, como de “mau gosto” estético, a Bossa Nova segue exatamente o caminho oposto, ainda que também ganhe um rótulo: neste caso, um rótulo de abonamento e conforto (de origem endógena inclusive) nas ambíguas searas onde facilmente se vê brotarem requinte e a sofisticação.
Do que estamos falando realmente? Da simplicidade ingênua e piegas do Brega ou do modo simples em que reside uma performance de Bossa Nova? Ora, como uma música pode ser simples e sofisticada ao mesmo tempo? Vale considerar como, para quê e por quais razões diferentes construtos sobre música são forjados e disseminados – fazendo aqui uma reverência ao campo da Etnomusicologia, na medida em que se preocupa em pensar a música para além do fenômeno sonoro em si.
Sem o rótulo de requinte e sofisticação atribuído à Bossa Nova, talvez se pudesse encarar com um pouco menos de constrangimento aspectos que poderiam lhe conferir simplicidade. Se não uma simplicidade que faça frente à “complexa e sofisticada” musicologia da Bossa Nova, pelo menos uma abertura no sentido de tirar a Bossa Nova dos espetáculos para poucos que a têm na “palma da mão”, popularizando-a de outro modo, quebrando-lhe o cristal rígido e diminuindo talvez a saudade da “boa” música do Brasil. Ou ainda, re-significar uma simplicidade que parece aos bossanovistas e cientistas musicais ficar evidente e bastante marcado na instrumentação, assim como num tipo de performance “acanhada” que se tornou uma das características mais reveladoras da Bossa Nova.
Dispensando comentários sobre gosto musical, é comum nas mudanças culturais aspectos distintivos se tornarem menos definidos (como se para circunscrever um gênero musical, por exemplo), seja pela cristalização do instrumental analítico-reflexivo – que em condições ordinárias me parece não acompanhar a dinâmica tempo-espaço-gente –, ou porque impera uma necessidade do campo da produção musical em abranger numa única obra diferentes elementos de escuta e identidade. Talvez por conta disto não se pare de falar em “resgate”, como se as músicas estivessem sendo extintas (não seria o caso da Bossa Nova, que se mantém intacta como elixir musical nacional). Ora... Se músicas estão se transformando, como poderiam estar ao mesmo tempo desaparecendo? Por outro lado, como gerar mudanças e ao mesmo tempo manter nítidos os identificadores de um gênero musical? Que tipo de responsabilidade estética estaria envolvido neste processo?
Com o recente advento da Techno Bossa Nova nos palcos de Nova Iorque, imagino que a saudade daquela Bossa Nova esteja ganhando força nas bandas de cá. Afinal de contas e com certo tom de ironia, música techno e Bossa Nova devem implicar em uma mistura pouco saudável. Ou será que aquela seria a Bossa Velha, mesmo a contragosto dos bossanovistas envolvidos com um Brasil desenvolvimentista e moderno, inclusive musicalmente? Por outro lado, e apesar de algumas ressalvas que faço às formas através das quais elementos da technomusic emergem de variados gêneros musicais que exploram uma linguagem contemporânea (que não vem ao caso comentar agora), é possível que o surgimento deste novo som bossanovista contenha em si algum teor de re-popularização da Bossa, entendida neste texto como decorrência possível de um esquema coletivo de assimilação que seja menos distintivo em termos sociais e culturais.
Se deixei transparecer a idéia de que toda e qualquer música deve gozar de um estado democrático pleno e abrangente, garanto-lhes que não se trata disto. Isto seria, no mínimo, desconsiderar preceitos básicos da Etnomusicologia contemporânea em torno do entendimento das redes de relações de poder e dos diferentes agenciamentos ligados às práticas musicais. A ambigüidade está justamente no encontro de subjetividades conformadoras do objeto de reflexão com demarcadores de discursos sobre a música, com o próprio discurso musical e com uma história particular que faz ponte com diretrizes intelectuais e construtos estéticos. Todos estes elementos vêm juntos reposicionar e tornar mais dinâmicas questões como popularidade e identidade, que em relação à Bossa Nova reforçam a hipótese de uma relativa cristalização do movimento, cuja saudade sublinha uma popularidade também compreendida através de seus focos de impopularidade, meio a todo um percurso que conduziu esta música à condição prestigiosa e igualmente ambígua de símbolo identitário brasileiro.
REFERÊNCIAS CONSULTADAS
Livros/Artigos
BÉHAGUE, Gerard. Bossa & Bossas: Recent Changes in Brazilian Urban Popular Music. In: Ethnomusicology. Vol. 17, No. 2 (May, 1973), pp. 209-233.
BOLLOS, Liliana Harb. A Bossa Nova através da crítica musical: renovação à custa de mal-estar. In: Música e Comunicação. No. 13, set.2005. Famecos/PUCRS, pp. 56-61.
MORENO, Albrecht. Bossa Nova, Novo Brasil: The Significance of Bossa Nova as a Brazilian Popular Music. In: Latin American Music Review. Vol. 17, No. 2 (1982), pp. 129-141.
NAPOLITANO, Marcos. A invenção da Música Popular Brasileira: um campo de reflexão para a História Social. In: Latin American Music Review. Vol. 19, No. 1 (Spring-Summer, 1998), pp. 92-105.
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. 2ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004 (Descobrindo o Brasil).
PEREIRA, Simone Luci. A escuta sonora da Bossa Nova nos anos 50 e 60: mídias sonoras numa sociedade entre sons e imagens. Trabalho apresentado no NP06 – Núcleo de Pesquisa Mídia Sonora, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05 de setembro de 2002.
Audiovisual
Coisa mais linda: a história e as histórias da Bossa Nova. Columbia TriStar Home Entertainment, Inc. São Paulo: Vitória Produções Cinematográficas Ltda, 2005. 1 DVD.
Texto escrito em 2008, enquanto aluno de doutorado e por ocasião de uma Mesa Redonda em homenagem à Bossa Nova no Congresso da ANPPOM/Salvador.
Grande Paul! Singularidade nas reflexões musicais e licença poética para falar sobre o assunto! Sucesso sempre!
Benedito Diniz Junior · Belém, PA 25/3/2010 09:20Obrigado, querido Bené. Que surpresa boa saber que aprecias esta excelente ferramenta que é o OVERMUNDO. Abraços,
Paulo Murilo Amaral · Belém, PA 25/3/2010 10:54Para comentar é preciso estar logado no site. Faa primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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