Teorema da incompletude de Deus
Retrato de um gorila macho ele era. Sendo um gênio da música, desde a vila onde nasceu até o mundo, Deusdemiro ficou conhecido por Deus. Usava roupas largas, que davam a impressão de serem muito maior ainda. O virtuosismo com o violino lhe deu a oportunidade de conhecer o mundo. Concertos, sinfonias, solos, luzes, mulheres - e a glória. Depois disso, Deus ganhara a chance de ser um homem comum e viver o resto de sua vida da maneira que desejasse, inclusive longe da música, que tanto lhe fez bem.
De orelhas pequenas, olhos escondidos em supercÃlios grossos, o rosto era um mapa de alegria e até uma certa beleza bruta. Sorriso estampado no corpo e nas vestes, que passaram dos elegantes trajes eruditos para o popular. Camisa florida de linho, bermuda, chinelo de couro e um chapéu de palha.
Quase todas as tardes, ele bebia vinho na varanda da confortável casa que construiu perto do lago, enquanto ouvia Sergel Rachmaninov. Foi convidado a fazer parte dos arrebóis, desde a cidade até o alto da colina onde ficava o convento. Tardes e vinhos ao som do concerto número três, opus 44, ele podia alcançar o cheiro das árvores enquanto saltava feito um grilo pesado pela vasta varanda da casa. E assim foi por algum tempo.
Allegro ma non tanto, Deus passou a cultivar o hábito de ficar em casa. Deixou de ver os amigos e nunca mais ouviu Rachmaninov, só ouvia rock em inglês e ficou viciado em cigarros feitos com formigas, que viviam nos troncos das árvores de figueira-do-inferno. A planta produzia uma quÃmica cujo poder alucinógeno era consumido pelas formigas pretas, que comiam as flores, e produziam feromônios fortÃssimos.
Introspectivo, agora ele ouvia a música muito alta, fumava formigas e bebia vinho enquanto caminhava pela varanda da casa. E, chapado com os acordes da guitarra de JJCale, esqueceu que era Deusdemiro, o gênio da música e o virtuose do violino. Comia enlatados e ficava seminu pela casa.
Nuage, Sallete e outras seis irmãs viviam no alto da colina. Eram freiras da ordem francesa das filhas da caridade de São Vicente de Paula. Elas vieram de Porto PrÃncipe, particularmente de uma favela violenta e miserável chamada Cité Soleil. Neste lugar aprenderam a lidar com as degradações humanas. Agora, como redenção, as duas francesas cuidavam de órfãos e faziam geléias de pêras e figos, que vendiam pela cidade. Sallete cuidava das embalagens e das vendas, e Nuage fazia as entregas de casa em casa.
Os pais de Nuage eram franceses, mas ela nasceu na Ilha da Martinica, em Fort-de-France. Seguiu o caminho da religião por vontade do pai, mas queria ser atriz ou cantora de óperas. Tomou gosto por fazer caridade e, aos vinte e nove anos, era um sÃmbolo de bondade e perseverança por todos os lugares que passava. O hábito escondia sua sexualidade, deixando apenas os olhos, azuis, em realce e um rosto como uma porcelana protegida da luz. Tinha estatura pequena e era apenas isso que todos naquele lugar sabiam.
No silêncio desfolhado do arvoredo, incha o barulho dos pneus da bicicleta que vem chegando. Nuage faz entregas todas as semanas para Deus, agora confinado na grande casa perto do lago. Num misto de perversão e inocência, aqueles olhos azuis faziam os fluidos de Deus se alterarem. E, sempre sorrindo, ele comprava geléias enquanto caminhavam e conversavam ao redor da casa pela varanda. Repetidas tardes eles se encontravam. Ele agia com honestidade, eficiência e estilo, era o caçador e a presa. A fascinação exercida pelo sagrado fez com que Deus se apaixonasse profundamente pela freira. Logo, imagens codificadas surgiram ante sua visão. Seria um sonho ou um gigante sonho coletivo do qual fossemos apenas hologramas, pensava Deus, enquanto caminhava com Nuage...(abrir arquivo).
Muito bom, Arlindo. Deusdemiro fumando formigas ao som de violinos e acordes da guitarra de JJCale. Fantástico! O final talvez eu esperasse diferente... Enfim, é uma questão de estilo, mas gostei muito mesmo. Um abraço.
PS.: se quiser, dê uma espiada no meu "Boas Festas, Feliz Natal", que está na fila de votação.
Nivaldo!
Pensei num outro final - depois te conto.
Cara a cara com a alma de justiça, eu perguntei. Porque ela insistia em apenas existir? Ela nem respondeu, só sorriu.
Enquanto eu viver, tenho que provar que a justiça existe.
Por isso despejo senso de justiça até no ravioli a bolhonesa - com vinho.
abraços
Vitória!
O teu brilhante me encheu de inspiração.
Obrigado!
abraços.
A distancia entre pensamento e gesto é o percurso modelar
Que lapida o objeto. Deus interfere na estrutura e nos arremates.
Ainda assim não existe (eu pelo menos não acredito) obra acabada.
A música do subconsciente dita arranjos involuntários. E o super Homem
Tem que ter cuidado. Deus e o Diabo são feitos do mesmo barro.
Agora, que você escreve bem pra caralho, é fato.
Invejo.
Abraços fortes.
Firmiano!
Deus e o Diabo são feitos do mesmo barro.Essa é a ideia!
Como voce, também tenho a minha própria religião.Tenho fé na ciência.
Quero cultuar leitores como voce,Firmiano!
Não tenho palavras para agradecer o elogio.
Grande abraço.
Oi Sebastião.
li o seu excelente texto em voz branda e com a velocidade e drama que ele exige. Uma delÃcia. Fui surpreendido, porém, pela famigerada "moral da estória" de suas três últimas linhas e o senti cambalear. Elimine-as por favor!!! "... Rachmaninov." Assim acaba. O resto é excesso!
Salve Valerio!
Particularmente, acho que vc tem razão.Eu tambem não gosto de "moral da história".Neste caso deixei (aquelas 3 linhas) para explicar o "teorema de Godel". Tambem acho que devia acabar sem moral da história... (empobreceu muito o final).
Agradecido pela sugestão.
Saudações pantaneiras.
Só agora me dei conta que seu nome é Arlindo e não Sebastião. Mil perdões (confundi observando as últimas mensagens).
Valério Fiel da Costa · São Paulo, SP 31/1/2007 15:30
Grande Arlindo!
Perdoe-me ter votado antes, bem antes em seu conto, e só agora comentar. É que a princÃpio, quando votei, vi que era texto complexo e precisava de tempo para sorvê-lo, como Deus que bebia vinho, mas sem exageros para não embotar o paladar ou perder os sentidos.
Não desmerecer sua obra apenas com um comentário supérfluo. Seria uma indignidade de minha parte. Por isso, só por isso, o comentário tardio.
MagnÃfico poema. Muitos poderão pensar: tá louco o JJ, isso é um conto. Li-o como uma prosa poética, o que para mim realmente pareceu ser. Acredito que você ficou sem fôlego ao fazê-lo porque foi a sensação que tive o tempo todo enquanto o lia. E enquanto o lia também entrei no mundo mágico das imagens, e são muitas, que povoavam a vida e os sonhos de Deus. Aliás, tenho certeza que esse nome foi proposital: reduzir o divino à condição humana. Sabe, quando você apresentou a freira imaginei logo que ela faria o contraponto com Deus. E não seria fugir ao ideal: se ele é Deus(ser supremo – ou carrega dentro de si essa confusão – quando nos destacamos em algo (acima da média) nos aproximamos da divindidade, a justa companheira só podia ser a freira.
Mas ao final de tudo, para mim, ficou a lição de os dois: homem e mulher, Deus e Nuage, por mais que se escondessem em carapaças (ele: “Depois disso, Deus ganhara a chance de ser um homem comumâ€; ela: “O hábito escondia sua sexualidade, deixando apenas os olhos, azuis...â€) não podiam refutar sua condição humana e suas incompletudes, suas imperfeição, das quais fugiam para tentar se aproximar – consciente ou inconscientemente – da perfeição divina.
Uma frase achei perfeita e fulcral no conto/poesia, a chave com a qual tudo se explica: â€Alguns homens perdem a memória, mas Deus perdeu o esquecimento.†Quando Deusdemiro perdeu o esquecimento, caiu na realidade humana; era realmente um homem, sujeito aos seus vÃcios e perversões. Resolveu seviciar Nuage.
Esse texto, sob a ótica de outros observadores, pode tomar suscitar mil outras interpretações pois é rico em imagens, idéias e nos leva a pensar, pensar e pensar. Foi pensando que o homem fez o mundo(olha o antropocentrismo!), pensou e agiu!
Enquanto lia lembrei muito de Alejo Carpentier, em especial o seu livro Reino deste Mundo, no qual num clima mágico narra as aventuras tropicais do primeiro mandatário do Haiti. BelÃssimo.
Espero ler outros textos sublimes seus, pois sei que os têm. E nunca me cansarei de dizer que “a incompletude é a nossa perfeiçãoâ€.
abcs
Tb concordo com o Valério Fiel, seu texto ficaria ainda melhor sem as três últimas linhas, finalizando em Sergel "Rachmaninov".
Sei que aqui será impossÃvel fazer isso, pois ele já está publicado; mas o fará com certeza em seu livro.
abraços
Salve Poeta!
â€Alguns homens perdem a memória, mas Deus perdeu o esquecimento.†Quando Deusdemiro perdeu o esquecimento, caiu na realidade humana; era realmente um homem, sujeito aos seus vÃcios e perversões.
Perfeito.Vc foi no coração do conto. Os teus comentários são surpreendentes - são outras obras criadas no calor do momento.
Qualquer coisa que eu disser seria superfluidade de palavras.
Me resta agradecer.
abraços
O livro
Para o livro o final foi modificado - preciso desse retorno,sempre.
Eu havia pensado em cortar e não fiz. Recebi o comentário do Valério e achei que era isso mesmo. Voce confirmou. O final da web será diferente.
saudações
Beleza, Arlindo! São escritores como você que firmam a realidade a necessidade do Overmundo. Estaremos aqui, eu quantos admiram a boa literatura, sempre a colaborar com os overamigos!
Abraços
Me realizo como se escreve um conto ou uma crônica, ou uma poesia, como vc bem disse, quando leio uma excelente obra e posso comentá-la a contento.
Tanta coisa prá dizer e um nó, aqui, na garganta, um travo nas palavras.
( Aplausos )
Ausente
Javé, nosso deus judeu-cristão, está ausente.
Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!