A vaca - um personagem
A mãe do menino leu a notÃcia em voz alta para a famÃlia. “Uma vaca atravessou a rua de maneira imprudente e atropelou um carro, ferindo levemente o motorista. Após o acidente, o animal foi levado para a delegacia, onde deverá permanecer até que o seu dono se apresente à s autoridades.â€
-- Quer dizer que a vaca foi presa, mãe?
A mulher, que está tão espantada quanto o garoto, faz que sim com a cabeça, bem devagar.
-- Mas por quê? – ele continua. – A vaca pode ficar presa para sempre, feito gente?
O pai interrompe:
-- Que história sem pé nem cabeça... Como podem prender uma vaca?
-- Quem sabe querem apenas atrair o dono dela, e dar uma bronca nele por ter deixado um bicho assim solto? – palpita a mulher.
-- Isso não tem o menor cabimento. Vai saber de onde saiu essa vaca. E se ela estivesse perdida no mundo, andando por aà há meses?
A preocupação do menino é outra.
-- Pai, será que a vaca sabe que atravessou a rua de maneira... como é que é a palavra, mãe? Imprudente?
-- É. Imprudente nesse caso quer dizer sem prestar atenção. Um termo meio esquisito para se usar com uma vaca, não acha?
-- Nossa! Imagina se uma vaca pode prestar atenção nas coisas feito as pessoas. Ela deve ter tomado um susto maior do que o moço do carro, isso sim.
O menino fala com tamanha convicção que chega a ficar de pé no meio da sala, com as mãos na cintura. E, quem sabe por causa dessa pose altiva, diz aquilo que ninguém imaginava ouvir:
-- Eu quero ir lá na delegacia visitar a vaca. Já pensou como ela deve estar se sentindo? Vamos lá, pai? Vamos, mãe?
Os pais se entreolham. Já negaram muitas coisas ao filho, não costumam fazer seus caprichos.
-- Ah, não vai dar. Vamos chegar lá e fazer o quê?
-- Pai, você vai falar que a vaca é nossa, oras.
O homem arregala os olhos para o filho e começa um discurso.
-- Que coisa mais feia. De onde você tirou a idéia de que podemos mentir desse jeito? Nem pensar...
-- Mas a vaca vai mofar lá, pai. Você mesmo disse que ela podia estar perdida por aÃ, não disse? Então, a gente vai lá, conta uma história para o delegado e vem embora com a vaca. Garanto que ela vai ficar contente.
A mãe intervém.
-- PeraÃ, filho. Não pode ser assim. O dono pode ir procurar a vaca... E, como seu pai disse, não se pode sair por aà contando mentira. Ainda mais para a polÃcia!
A discussão esquenta. O menino não desiste. Chega a ficar de joelhos, com as mãos em prece.
-- Por favor, pai. Por favor...
Nesse instante toca a campainha. A mãe do garoto atende. Ouve-se a voz de uns três ou quatro moleques falando ao mesmo tempo. Por fim, um deles pede:
-- A gente tá indo jogar videogame. Será que o Rodrigo quer ir junto?
A mulher mal se vira e dá de cara com o filho, que lhe diz com um sorriso no rosto:
-- Depois a gente continua, tá? Acho que a vaca pode agüentar mais um pouquinho lá.
A porta é fechada com estrondo. Os pais se entreolham. Vão passar o resto do dia pensando na vaca. E o menino... Bom, o menino vai ficar é no computador.
Já publiquei aqui um dos contos de meu livro ainda inédito intitulado TODA VACA. O primeiro deles se chama A vaca - um bicho e foi publicado na Folha de S.Paulo (Folhinha, maio de 2006).
Este é mais um da série. Infantil? Juvenil? Senil?
Tudo talvez.
Ah....que pena.... queria tanto a cena do menino,libertando a vaca!!!!!!
lindo!
bjs
ND
Esta parece ser uma das funções da criança no mundo: provocar nossas mentes. Boa percepção, Milu.
Aglacy · Aracaju, SE 11/1/2009 20:01
Parabéns, muito bom.
Ficar esquentando a cabeça é coisa de adulto. Criança não tem tempo para isso.
bjs
É, criança é assim mesmo. Seus interesses mudan de direção como o vento. Biruta, em casa, ficam os pais.
Votado Ivette G M
Milu.
Só vi teu texto agora, ando meio distante daqui.
Pobre é da vaca...
oi, bethãnia. o texto não foi publicado. só aparece aqui na minha página, acho. não entendi direito, mas acho que, em resumo, é isto.
tua leitura, a qualquer hora, é bem-vinda. :)
eis uma das vantagens do overmundo: seis meses depois o texto ainda recebe comentários.
valeu, ayurman.
abs
Tudo talvez.
Descobri você hoje. Adorando seu estilo.
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